MARCIÃO: O “PAI”
ESQUECIDO E INVENTOR DO NOVO TESTAMENTO[1]
Tradução de José
Aristides da Silva Gamito
O cristianismo tem uma
grande dívida com um homem sem conexão direta com Jesus de Nazaré ou Paulo de
Tarso - um homem rotulado como herege pelos antecessores do cristianismo
ortodoxo. Marcião (95-165 d. C.) era um construtor naval, possivelmente proprietário
de navios, de Ponto, uma pequena região no que hoje é o norte da Turquia. Nós
sabemos pouco sobre ele, exceto que em algum momento de sua carreira ele se
juntou à comunidade cristã em Roma apenas para debates com a liderança de lá.
Em última análise, eles foram incapazes de resolver suas diferenças, e a
comunidade marcionita rompeu com outros seguidores de Jesus daquela época. Não
se sabe quando foram separadas as comunidades na prática, mas em algumas partes
do mundo antigo os marcionitas eram chamados de “cristãos”, enquanto grupos com
laços mais próximos com o judaísmo eram chamados de “nazarenos”.
Marcião deixou um
legado duradouro para os cristãos como o inventor do Novo Testamento. Jason
BeDuhn, autor de The First New Testament:
Marcion’s Scriptural Canon, argumenta que Marcião não apenas reuniu o
primeiro cânone cristão das escrituras, mas também deu ao cristianismo a idéia
de fazê-lo. Na Conferência “No cristianismo primitivo: herança ou heresias?” em
Santa Rosa, Califórnia, BeDuhn falou sobre o importante papel que Marcião
desempenhou na formação da identidade cristã.[2]
Isso começa com a relação entre gentios e judeus no Império Romano. “Uma boa
analogia contemporânea é o interesse que alguns americanos brancos modernos têm
na religião e na cultura dos nativos americanos”, ele disse, “uma coisa
semelhante estava acontecendo com os fãs gentios do judaísmo no mundo antigo.
Eles queriam adotar a espiritualidade e as práticas estrangeiras.” No entanto,
os judeus se rebelaram várias vezes contra o Império Romano no segundo século,
e os grupos cristãos gentios fugiram da associação com eles, assumindo novas
formas no processo.
Os marcionitas eram
pesco-vegetarianos que abraçavam o pacifismo. As mulheres ocupavam altos cargos
de liderança, pelo menos o suficiente para que os críticos de marcionitas se
queixassem do papel que as mulheres desempenhavam no movimento. Eles não acreditavam
que o deus de Jesus era o mesmo deus dos judeus. Eles acreditavam que o deus
dos judeus era um deus criador que governava com base no julgamento e na
violência, que Marcião argumentou ao apelar para textos violentos nas
Escrituras Hebraicas. Marcião viu o deus de Jesus como um ser inteiramente
novo, um deus superior que forneceu a fuga do julgamento deste mundo. Mais
importante ainda, os marcionitas tinham algo que nenhum outro cristão tinha: um
cânon de suas próprias escrituras.
Desafiando
as visões tradicionais sobre Marcião
Críticos de Marcião
como Tertuliano e Epifânio se queixaram de que Marcião cortou e editou as Escrituras
para se adequar às suas crenças. O erudito biblista Adolf von Harnack aceitou
esta afirmação em seu texto definitivo sobre Marcião, Marcion: The Gospel of an Alien God (1920). No entanto, Tertuliano
e Epifânio viveram várias gerações depois de Marcião, e eles assumiram que o
Novo Testamento que eles liam já existia na época de Marcião. Isso não aconteceu.
Os críticos de Marcião estavam lendo a história de trás para frente em vez de
avançar: ainda não havia o Novo Testamento.
Nós tendemos a assumir
a versão do cristianismo que vemos hoje como inevitável, mas, na verdade, havia
muitas maneiras possíveis para o cristianismo se desenvolver. O cristianismo
poderia nunca ter se tornado uma religião com um conjunto de escrituras. Os
cristãos poderiam ter continuado a interpretar e reinterpretar as Escrituras Hebraicas,
confiar na narrativa oral, considerarem-se judeus e assim por diante. A própria
atitude dos marcionitas se separando dos judeus levou-os a declarar um “novo”
testamento, e isso fez toda a diferença.
O
Novo Testamento de Marcião
Como foi a versão de
Marcião do Novo Testamento? Ela tinha duas partes: o Evangelion, que era um evangelho relacionado ao Evangelho de Lucas,
e o Apostolikon, uma coleção de
cartas de Paulo. Marcião é nossa primeira testemunha de seis das dez cartas
agora consideradas autênticas pelos estudiosos modernos da Bíblia. Estudiosos
da Bíblia chegaram à conclusão de que apenas algumas cartas atribuídas a Paulo
são autênticas (a maioria exclui 1 e 2 Timóteo e Tito, por exemplo). A
evidência de Marcião apóia essa descoberta. A inclusão das cartas de Paulo no
Novo Testamento não era de forma alguma certa. Em vez disso, a escolha de
Marcião para incluir as cartas conseguiu empurrar outras comunidades para fazer
a mesma coisa quando surgiram com cânones de escritura concorrentes, embora
tenha levado seus competidores duzentos anos para estabelecer o cânon agora
encontrado nas Bíblias de hoje.
Esta é uma maneira
muito diferente de olhar para o Novo Testamento Marcionita, e os estudiosos
terão que comparar a edição reconstruída por Jason BeDuhn para determinar como
isso muda nossa visão de como o cristianismo primitivo se desenvolveu. Por
exemplo, o Evangelion é muito mais
curto que o Evangelho de Lucas, e não está claro se ambos foram escritos pela
mesma pessoa para diferentes comunidades, ou se um editor posterior adicionou
material novo ao Evangelho de Lucas. Além disso, BeDuhn descobriu que a versão
marcionita de Romanos 9-11 é completamente diferente, ainda que este texto
tenha sido usado por alguns estudiosos como uma chave para a teologia paulina.
Independentemente de como essas descobertas acabam se desenrolando nas discussões
e debates acadêmicos, BeDuhn identifica quatro contribuições significativas de
Marcião para a história cristã:
1. Os
cristãos devem a ideia de um “novo” testamento a Marcião.
2. Os
cristãos devem a Marcião a forma particular do Novo Testamento.
3. Os
cristãos devem a Marcião a proeminência da voz de Paulo no Novo Testamento.
4. Finalmente,
os cristãos devem a Marcião uma identidade cristã baseada em uma escritura
especial própria.
[1] Tradução da matéria “Marcion:
Forgotten “Father” and Inventor of the New Testament” do site Westar Institute.
Disponível em: <https://www.westarinstitute.org/blog/marcion-forgotten-father-inventor-new-testament/>
Acesso em 01 jul. 2018.
[2] A notícia deste texto é de 28 de
outubro de 2013.
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