segunda-feira, 6 de março de 2017

III - Religiao e Literatura

12-05 E3
Epifanio. Crédito: Patriarcado de Antioquia.



EVANGELHO DE EVA SEGUNDO O PANARION DE EPIFÂNIO
EVE’S GOSPEL ACCORDING TO PANARION OF EPIPHANIUS

José Aristides da Silva Gamito[1]

1.    Introdução

A literatura cristã antiga é ainda bastante desconhecida fora do ambiente acadêmico. Muitas pessoas ignoram o fato de que os “evangelhos” vão além dos quatro que compõem o Novo Testamento. Dentre uma variedade de textos denominados “evangelhos” apenas quatro foram canonizados (Mateus, Marcos, Lucas e João). Alguns desses textos antigos nos foram transmitidos integralmente, mas a grande maioria sobreviveu em fragmentos ou em citações de outros autores cristãos. No presente artigo, identificaremos alguns desses evangelhos esquecidos na obra Panarion de Epifânio de Salamina.
Neste levantamento não entraremos no mérito da ortodoxia, heterodoxia ou heresia dessas obras. Nós as consideraremos como literatura cristã antiga e indicarmos o que sobreviveu delas. Seu valor específico é perceber a pluralidade do cristianismo primitivo. Dos evangelhos citados, faremos comentários especificamente sobre o Evangelho de Eva.

2.    Epifânio de Salamina e a obra Panarion

            Epifânio de Salamina nasceu por volta de 310. Recebeu educação monástica e foi bispo em Chipre. Assumiu fortes polêmicas anti-heresias. Consideravam-se heresias aquelas doutrinas que diferiam do cristianismo oficial. Entre 374 e 377 escreveu a obra Panarion em três volumes. O intuito do livro é combater 80 heresias. São heresias de seu tempo e também anteriores ao cristianismo.[2]
Na seção 26 da obra Panarion há algumas referências a textos gnósticos. Dentre eles, aparecem menções a evangelhos. Há uma passagem curta do Evangelho de Eva (26, 3.1). Uma referência ao Evangelho de Filipe (26, 13.2). Aparece no 26.2,5 uma menção ao Evangelho da Perfeição, mas sem nenhuma citação. E o Evangelho de Judas (38. 1,5). Em uma única obra temos conhecimento da existência de vários evangelhos não-canônicos[3].
Os Evangelhos de Filipe e de Judas sobreviveram integralmente. São também mais conhecidos. Daremos atenção específica ao Evangelho de Eva. Já o Evangelho da Perfeição é apenas mencionado, não há citações para que possamos conhecer seu conteúdo. Harnack e Hennecke propõem que o dito anônimo de Hipólito de Roma na obra Refutação de Todas as Heresias seja atribuído ao Evangelho da Perfeição[4]: “O começo da perfeição é o conhecimento do homem, o conhecimento de Deus é a completa perfeição” (III, 55).[5]

3.    O Evangelho segundo Eva

            Epifânio de Salamina cita o seguinte trecho deste Evangelho:

Pus-me de pé numa alta montanha e vi um homem alto e outro homem de baixa estatura e ouvi como se fosse um som de trovão e fui mais próximo para ouvir. Então, ele me falou: “Eu sou tu e tu és eu e onde tu estiveres, lá estou eu, e eu estou espalhado em todas as coisas, e de onde tu quiseres, tu me recolhes, mas quando tu me recolhes, então, tu te recolhes a ti mesmo”. Tradução nossa. (Panarion 26. 3,1).

Na mesma seção, aparece uma segunda citação anônima que pode ser atribuída ao Evangelho de Eva:

 “Eu vi uma árvore que produz frutos doze vezes por ano, e ele me disse: “Essa é a Árvore da Vida”” tradução nossa. (Panarion 26. 5,1).

O primeiro trecho pode ser comparado a dois logia do Evangelho de Tomé. O logion 108 diz o seguinte: “Aquele que se saciar em minha boca tornar-se-á como eu. Eu também me tornarei como ele e as coisas ocultas lhe serão reveladas”. Os trechos seguintes são semanticamente comparáveis: “Eu sou tu e tu és eu e onde tu estiveres, lá estou eu...” (Evangelho de Eva) / “Aquele que se saciar em minha boca tornar-se-á como eu. Eu também me tornarei como ele...” (Evangelho de Tomé). Há sugestão de uma identificação entre o divino e o humano.
 O logion 77 do Evangelho de Tomé, que diz o seguinte: “Eu sou a luz que está sobre todos eles. Eu sou o Todo: o Todo saiu de mim e o Todo chegou até mim. Se rachardes a madeira, eu estarei lá; se erguerdes a pedra lá me encontrareis”. A ubiquidade do divino aparece paralelamente nos termos: “...e eu estou espalhado em todas as coisas, e de onde tu quiseres, tu me recolhes...” (Evangelho de Eva)/ “. Se rachardes a madeira, eu estarei lá; se erguerdes a pedra lá me encontrareis” (Evangelho de Tomé).
As duas leituras intertextuais permitem-nos deduzir um tema do Evangelho de Eva. Assim como nas leituras platonizantes e gnósticas do cristianismo, sugere-se uma identificação entre o divino e humano que se dá por meio do conhecimento dos ensinamentos de Cristo. Além disso, existe um transfundo panenteísta nos textos: O divino está em todas as coisas da natureza basta procurar nelas para encontrá-lo.
O segundo trecho ser lido paralelamente com Apocalipse 22,2: “No meio de sua praça, e de um lado e de outro do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto de mês em mês; e as folhas da árvore são para a saúde das nações”. As duas perícopes dizem exatamente a respeito da árvore da vida que frutifica o ano todo. Essa árvore faz parte da nova criação. Se este for o sentido de renovar a criação nos fins dos tempos, temos uma temática apocalíptica no Evangelho de Eva.

Referências

EPIPHANIUS, Saint. The Panarion of Epiphanius of Salamina. Book I. Translated by Frank Williams. Boston: Brill, 2009.

MORESCHINI, Claudio e NORELLI, Enrico. Manual de Letteratura Antica Greca e Latina. Brescia: Editrice Morcelliana, 1999.

ROMANUS, Hippolytus. The Refutation of All Heresies.




[1] Professor de Filosofia e Mestrando em Ciências das Religiões. E-mail: joaristides@gmail.com.
[2] MORESCHINI, Claudio e NORELLI, Enrico. Manual de Letteratura Antica Greca e Latina. Brescia: Editrice Morcelliana, 1999, pp. 234-235.
[3] EPIPHANIUS, Saint. The Panarion of Epiphanius of Salamina. Book I. Translated by Frank Williams. Boston: Brill, 2009, p. 26.
[4] The Gospel of Perfection. Disponível em: http://www.earlychristianwritings.com/perfection.html
[5] ROMANUS, Hippolytus. The Refutation of All Heresies. III, 55.

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