Epifanio. Crédito: Patriarcado de Antioquia. |
EVANGELHO
DE EVA SEGUNDO O PANARION DE EPIFÂNIO
EVE’S GOSPEL ACCORDING TO PANARION
OF EPIPHANIUS
José Aristides da Silva Gamito[1]
1. Introdução
A literatura cristã
antiga é ainda bastante desconhecida fora do ambiente acadêmico. Muitas pessoas
ignoram o fato de que os “evangelhos” vão além dos quatro que compõem o Novo
Testamento. Dentre uma variedade de textos denominados “evangelhos” apenas
quatro foram canonizados (Mateus, Marcos, Lucas e João). Alguns desses textos antigos
nos foram transmitidos integralmente, mas a grande maioria sobreviveu em
fragmentos ou em citações de outros autores cristãos. No presente artigo,
identificaremos alguns desses evangelhos esquecidos na obra Panarion de Epifânio de Salamina.
Neste levantamento não entraremos
no mérito da ortodoxia, heterodoxia ou heresia dessas obras. Nós as
consideraremos como literatura cristã antiga e indicarmos o que sobreviveu
delas. Seu valor específico é perceber a pluralidade do cristianismo primitivo.
Dos evangelhos citados, faremos comentários especificamente sobre o Evangelho
de Eva.
2. Epifânio de Salamina e a obra Panarion
Epifânio de
Salamina nasceu por volta de 310. Recebeu educação monástica e foi bispo em
Chipre. Assumiu fortes polêmicas anti-heresias. Consideravam-se heresias
aquelas doutrinas que diferiam do cristianismo oficial. Entre 374 e 377
escreveu a obra Panarion em três
volumes. O intuito do livro é combater 80 heresias. São heresias de seu tempo e
também anteriores ao cristianismo.[2]
Na seção 26 da obra Panarion há algumas referências a textos
gnósticos. Dentre eles, aparecem menções a evangelhos. Há uma passagem curta do
Evangelho de Eva (26, 3.1). Uma referência ao Evangelho de Filipe (26, 13.2).
Aparece no 26.2,5 uma menção ao Evangelho da Perfeição, mas sem nenhuma citação.
E o Evangelho de Judas (38. 1,5). Em uma única obra temos conhecimento da
existência de vários evangelhos não-canônicos[3].
Os Evangelhos de Filipe
e de Judas sobreviveram integralmente. São também mais conhecidos. Daremos atenção
específica ao Evangelho de Eva. Já o Evangelho da Perfeição é apenas
mencionado, não há citações para que possamos conhecer seu conteúdo. Harnack e
Hennecke propõem que o dito anônimo de Hipólito de Roma na obra Refutação de Todas as Heresias seja atribuído
ao Evangelho da Perfeição[4]:
“O começo da perfeição é o conhecimento do homem, o conhecimento de Deus é a completa
perfeição” (III, 55).[5]
3. O Evangelho segundo Eva
Epifânio
de Salamina cita o seguinte trecho deste Evangelho:
Pus-me de pé
numa alta montanha e vi um homem alto e outro homem de baixa estatura e ouvi
como se fosse um som de trovão e fui mais próximo para ouvir. Então, ele me
falou: “Eu sou tu e tu és eu e onde tu estiveres, lá estou eu, e eu estou
espalhado em todas as coisas, e de onde tu quiseres, tu me recolhes, mas quando
tu me recolhes, então, tu te recolhes a ti mesmo”. Tradução nossa. (Panarion 26. 3,1).
Na mesma seção, aparece
uma segunda citação anônima que pode ser atribuída ao Evangelho de Eva:
“Eu vi uma árvore que produz frutos doze vezes
por ano, e ele me disse: “Essa é a Árvore da Vida”” tradução nossa. (Panarion 26. 5,1).
O primeiro trecho pode
ser comparado a dois logia do
Evangelho de Tomé. O logion 108 diz o
seguinte: “Aquele que se saciar em minha boca tornar-se-á como eu. Eu também me
tornarei como ele e as coisas ocultas lhe serão reveladas”. Os trechos
seguintes são semanticamente comparáveis: “Eu
sou tu e tu és eu e onde tu estiveres, lá estou eu...” (Evangelho de
Eva) / “Aquele que se saciar em minha
boca tornar-se-á como eu. Eu também me tornarei como ele...” (Evangelho
de Tomé). Há sugestão de uma identificação entre o divino e o humano.
O logion
77 do Evangelho de Tomé, que diz o seguinte: “Eu sou a luz que está sobre
todos eles. Eu sou o Todo: o Todo saiu de mim e o Todo chegou até mim. Se
rachardes a madeira, eu estarei lá; se erguerdes a pedra lá me encontrareis”. A
ubiquidade do divino aparece paralelamente nos termos: “...e eu estou espalhado em todas as coisas, e de onde tu quiseres,
tu me recolhes...” (Evangelho de Eva)/ “. Se rachardes a madeira, eu estarei lá; se erguerdes a pedra lá me
encontrareis” (Evangelho de Tomé).
As duas leituras
intertextuais permitem-nos deduzir um tema do Evangelho de Eva. Assim como nas
leituras platonizantes e gnósticas do cristianismo, sugere-se uma identificação
entre o divino e humano que se dá por meio do conhecimento dos ensinamentos de
Cristo. Além disso, existe um transfundo panenteísta nos textos: O divino está
em todas as coisas da natureza basta procurar nelas para encontrá-lo.
O segundo trecho ser
lido paralelamente com Apocalipse 22,2: “No meio de sua praça, e de um lado e
de outro do rio, estava a árvore da
vida, que produz doze frutos,
dando seu fruto de mês em mês; e as folhas da árvore são para a saúde
das nações”. As duas perícopes dizem exatamente a respeito da árvore da vida
que frutifica o ano todo. Essa árvore faz parte da nova criação. Se este for o
sentido de renovar a criação nos fins dos tempos, temos uma temática apocalíptica
no Evangelho de Eva.
Referências
EPIPHANIUS, Saint. The Panarion of Epiphanius of Salamina. Book I. Translated by Frank
Williams. Boston: Brill, 2009.
MORESCHINI, Claudio e NORELLI, Enrico. Manual de Letteratura Antica Greca e Latina.
Brescia: Editrice Morcelliana, 1999.
ROMANUS, Hippolytus. The Refutation of All Heresies.
[1] Professor de Filosofia e
Mestrando em Ciências das Religiões. E-mail: joaristides@gmail.com.
[2] MORESCHINI, Claudio e NORELLI,
Enrico. Manual de Letteratura Antica Greca
e Latina. Brescia: Editrice Morcelliana, 1999, pp. 234-235.
[3] EPIPHANIUS, Saint. The Panarion of Epiphanius of Salamina. Book
I. Translated by Frank Williams. Boston: Brill, 2009, p. 26.
[4] The Gospel of Perfection.
Disponível em: http://www.earlychristianwritings.com/perfection.html
[5] ROMANUS, Hippolytus. The Refutation of All Heresies. III, 55.
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