UMA
CONTROVÉRSIA DO CRISTIANISMO PRIMITIVO: A DISPUTA ENTRE NOMISTAS E ANTINOMISTAS
A
CONTROVERSY IN EARLY CHRISTIANITY: THE DISPUTE
BETWEEN
NOMISTS AND ANTINOMISTS
Resumo
A
polêmica entre fé e obras tem sua origem no cristianismo primitivo. As igrejas
paulinas eram antinomistas e consideravam que o Evangelho estava acima da Lei. As
igrejas judaico-cristãs eram nomistas e aceitavam a fé em Jesus sem desconsideração
com a Lei. Neste contexto, se insere a diferença doutrinal entre Paulo e Tiago.
Palavras-chave: Fé. Obras. Nomista.
Antinomista. Paulo. Tiago.
Abstract
The controversy
between faith and works has its origin in early christianity. The pauline
churches were antinomist and considered the Gospel above the Law. The judeo-christian
churches were nomist and accepted faith in Jesus without disregard for the law.
In this context, the doctrinal difference between Paul and James is inserted.
Keywords: Faith. Works. Nomista. Antinomist. Paulo. Tiago.
1. Introdução
Quando Lutero postula a
doutrina da justificação pela fé e põe em marcha uma polêmica com a Igreja
Católica do século XVI, ele não estava fazendo algo totalmente inédito. Esta mesma
controvérsia existiu no cristianismo primitivo. Na Igreja dos primeiros
séculos, existiam os nomistas que
eram cristãos de origem judaica que reivindicavam a autoridade da Lei e os antinomistas que consideravam que a nova
aliança tinha um poder revocatório da Lei.[1]
A controvérsia do
século XVI surge da contraposição das leituras de Romanos e de Tiago. Os dois
textos dão ênfases diferentes ao binômio fé/obras. Paulo considera que a adesão
ao Evangelho pela fé é suficiente para a salvação (Rm1, 16-17). Tiago 3, 14-26
já entra no mérito de modo incisivo: “Acaso a fé poderá salvá-lo?” As obras são
a comprovação da fé. Elas são o aspecto exterior da religião. Uma fé sem obras é morta.
Neste artigo, vamos
buscar alguns testemunhos desta polêmica no início do cristianismo. As
diferentes visões a respeito da Lei ocorreram naturalmente dentro do processo
de formação do cristianismo. Como, dentro de um primeiro estágio, o
cristianismo era apenas um movimento reformista dentro judaísmo, era esperado
um debate sobre o que permaneceria válido ou não do Antigo Testamento. Mais
tarde, houve uma ruptura definitiva entre as duas religiões, aí estas decisões
ficaram mais fáceis.
2.
O antinomismo das igrejas paulinas
As
cartas aos Romanos e aos Gálatas nos indicam que os cristãos de tradição
paulina rejeitavam a autoridade da Lei judaica. A Carta aos Romanos 1, 16-17
anuncia que a justificação se dá por meio da fé. A Carta aos Gálatas 3, 1-5
também argumenta dizendo que o Espírito foi conferido aos cristãos pela adesão
à fé e não pelas obras da Lei. Fora dos escritos paulinos, está a Carta aos
Hebreus. Esta carta, que parece ter sido escrita na Itália (Hb 13, 24), defende
claramente que a antiga Lei foi revogada (Hb 7, 18-19). Portanto, para os
cristãos a salvação vem da fé no Evangelho. Esta característica doutrinal foi
marcante nas comunidades paulinas.
No começo das missões
fundadoras das primeiras comunidades, já começava esta polêmica em torno do
valor da Lei. Alguns membros da Igreja de Jerusalém começaram a cobrar dos
antioquenos que eles deveriam antes se circuncidar para depois aderir à fé em
Jesus. Diante da polêmica, Paulo e Barnabé vão a Jerusalém para consultar os
apóstolos (At 15, 1-4).
Em Jerusalém, aconteceu
o primeiro debate conciliar da igreja. Os cristãos de origem farisaica impunham
a Lei como condição para a salvação. Mas, Pedro se posiciona dizendo que “é
pela graça do Senhor Jesus que nós cremos ser salvos” (At 15, 11). Tiago
intervém também no debate dizendo que eles não deveriam incomodar os gentios
convertidos (At 15, 19).
A partir deste aval dos
apóstolos, Paulo leva seu antinomismo até as últimas consequências. Portanto,
uma vasta área geográfica ocupada pelas igrejas paulinas preservou a doutrina
da supremacia da fé sobre as obras. Marcião de Sinope (85-160) representou
reação mais extrema antinomista. Ele era natural da Ásia Menor.
Marcião considerava o
Deus do Antigo Testamento incompatível com o Deus de Jesus. De acordo com seu
ponto de vista, a Lei estava abolida como Paulo ensinou. Quando ele se
posicionou sobre o cânon bíblico, aceitou apenas o Evangelho de Lucas e as cartas
paulinas como Escrituras e rejeitou o Antigo Testamento integralmente. Ele teve
o mérito de ser o primeiro a reivindicar a noção de Novo Testamento como
Escrituras. Paulo era o autor preferido de Marcião justamente por causa da
doutrina da supremacia da fé.
3.
O nomismo das igrejas judaico-cristãs
As igrejas paulinas se
situavam fora da Palestina e eram compostas por pagãos e judeus que haviam
nascidos na diáspora. O distanciamento das tradições do Templo de Jerusalém
facilitou a propagação da revogação da Lei. Porém, aquelas comunidades cristãs
oriundas de judeus convertidos, sejam de grupos de fariseus, sejam de judeus
influenciados pela tradição do Templo, não se desapegaram facilmente da
autoridade da Lei.
A Carta de Tiago era
proveniente de uma comunidade judaico-cristã. Segundo a tradição, Tiago foi o
primeiro bispo de Jerusalém. Esta carta representa uma visão distinta de Paulo,
segundo a qual a prática das virtudes da Lei é indispensável para a salvação. Tiago
contém um apelo à Lei e ao espírito do profetismo do Antigo Testamento que enfatiza
o dever ético do judeu para com os órfãos e as viúvas.
Há registro de igrejas judaico-cristãs que conservaram uma
reverência à Lei mesmo acreditando em Jesus. Dentre os nomistas, estão os cristãos ebionitas. Os ebionitas acreditavam que
Jesus era simples homem nascido de homem e mulher. Eles tinham predileção pela
observância da Lei em detrimento da fé. Observavam o sábado e toda disciplina
judaica e seu Evangelho de uso era dos Hebreus (27, 1-5).[2] Os
cristãos ebionitas consideravam a predominância da Lei. Eles mantinham práticas
judaicas, além de observarem o sábado, aceitavam a circuncisão e realizavam
rituais em purificação (30, 2,5).[3]
Os nazarenos também acreditavam em Jesus, mas tinham a Lei em
alta consideração. Eles eram judeus-cristãos ligados à Lei e à circuncisão (29,
5, 4).[4] Portanto,
muitas comunidades que se desenvolveram dentro da Palestina possuíam um
cristianismo judaico, observador da Lei. Eles não aceitavam a posição antinomista de Paulo. Estes cristãos
conservavam uma versão do Evangelho de Mateus (ou similar) justamente por ser o
evangelho mais judaico. Jesus diz neste evangelho: “Não penseis que vim revogar
a Lei e os Profetas” (Mt 5,17).
4.
Considerações gerais
O cristianismo primitivo não era um movimento religioso
unificado. Havia dois posicionamentos claros a respeito da Lei. As igrejas
paulinas eram antinomistas e as
igrejas judaico-cristãs eram nomistas.
Isto se explica em parte por razões culturais. Além disso, os cristãos tinham
duas coisas a fazer, ou aceitavam a Lei e Cristo, ou consideravam Cristo
totalmente uma novidade a ponto de rechaçar a Lei. As duas posições eram possíveis
e existiram.
Em parte, Paulo acabou prevalecendo. Eusébio de Cesareia nos
informa que no século II alguns rejeitavam a Carta de Tiago. Esta rejeição deve
ter resultado da rivalização com as Cartas de Paulo. Como elas ocuparam uma
parte significativa do Novo Testamento, acabaram sendo parâmetro para aceitação
dos outros livros.
Afinal, fé ou obras? Poderíamos
dizer que Paulo e Tiago discutem sobre duas dimensões de um mesmo fenômeno: a
fé. Porém, estão focando pontos diferentes. Se alguém ler cada texto como unidade em si
mesmo, não há contradições. A contradição aparece quando se quer fazer do Novo
Testamento uma unidade teológica, tentando harmonizar diferentes pontos de
vista. O cristianismo primitivo era plural e até contraditório em si mesmo.
Referências
CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. Tradução de
Wolfgang Fischer. São Paulo: Fonte Editorial, 2019, p. 101.
SALAMIS, Epiphanius of. The
Panarion of Epiphanius of Salamis: Book I. Translated by Frank Williams. Leiden;
Boston: Brill,
2009, 30, 205.
[1]
Os termos “nomistas” (a
favor da Lei) e “antinomistas” (contra a Lei) foram concebidos especificamente
para este artigo, não consultamos o uso deles em outros textos.
[2] CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. Tradução de Wolfgang Fischer. São
Paulo: Fonte Editorial, 2019, p. 101.
[3] SALAMIS, Epiphanius of. The Panarion of Epiphanius of Salamis:
Book I. Translated by Frank Williams. Leiden; Boston: Brill, 2009, 30, 205.
[4] SALAMIS, Epiphanius of. The Panarion of Epiphanius of Salamis:
Book I. Translated by Frank Williams. Leiden; Boston: Brill, 2009, 29, 5, 4.