AS
CRENÇAS RELIGIOSAS NO CAMPO DA EPISTEMOLOGIA
1.
Introdução
Há
uma linha de debate na epistemologia que foca nas crenças e no conhecimento
religioso. Introduziremos dois nomes nesta breve incursão no problema: Alvin
Plantinga (posição calvinista) e Linda Zagzebski (posição católica).
O
debate é recente. Ele começa na década de 80, depois de um período de
desconfiança das crenças religiosas por influência do iluminismo.
Em 1983, Alvin Plantinga e Nicholas
Wolterstorff publicaram o livro Faith and Rationality, iniciando assim a fase
da Epistemologia Reformada. Este movimento parte do pressuposto de que a crença
em Deus não necessita de outras crenças e nem de evidências para ser racional. Zagzebski
opera como crítica da Epistemologia Reformada.
2.
As
influências da tese do sensus divinitatis
de Alvin Plantinga
2.1. Sensus divinitatis
em Tomás de Aquino
No livro IV da Suma
contra os Gentios, Tomás de Aquino trata do conhecimento natural de Deus:
O intelecto humano, que das coisas
sensíveis recebe o conhecimento que lhe é conatural, para intuir em si mesmo a
essência divina, que transcende infinitamente todas as coisas sensíveis, e até
todos os entes, por si mesmo não é capaz de atingir a essência divina.[1]
Ao
defender o conhecimento natural de Deus, Tomás argumento que existe uma ordem
de perfeição na natureza cujo topo é Deus, na expressão de Tomás, o “sumo
vértice das coisas”. Portanto, o homem partindo das coisas inferiores ascende
até o divino. O conhecimento natural de Deus se dá por intuição intelectiva.
Tomás
apresente um tríplice grau de conhecimento de Deus. Primeiramente, o homem
conhece pela razão natural, depois, conhece pela revelação divina as coisas que
excedem a capacidade do intelecto, e por último, após a morte, conhece por intuição
pura.
Há, pois, três conhecimentos do homem referentes às
coisas divinas: o primeiro, enquanto o homem mediante a luz natural da razão e
pelas criaturas sobe até o conhecimento de Deus; o segundo enquanto a verdade
divina que excede o intelecto humano, desce até nós pela revelação, não para
ser vista como demonstração, mas para ser crida como pronunciada por palavras;
terceiro, enquanto a mente humana é elevada à perfeita intuição das coisas
reveladas.[2]
2.2. Sensus divinitatis em João Calvino
No capítulo III da obra “Institutas da Religião
Cristã”, Calvino formula a noção de sensus
divinitatis:
Que existe na mente humana, e na verdade
por disposição natural, certo senso da divindade, consideramos como além de
qualquer dúvida. Ora, para que ninguém se refugiasse no pretexto de ignorância,
Deus mesmo infundiu em todos certa noção de sua divina realidade, da qual,
renovando constantemente a lembrança, de quando em quando
instila novas gotas,
de sorte que,
como todos à
uma reconhecem que Deus existe e é seu Criador, são por seu
próprio testemunho condenados, já que não só não lhe rendem o culto devido, mas
ainda não consagram a vida a sua vontade.[3]
Segundo
Calvino, existe uma disposição natural na mente humana de um senso de
divindade. Esta lembrança vai sendo
reavivada constantemente. A prova apresentada desta tese é a de que mesmo povos
mais simples podem ter uma noção de religiosidade. Esta onipresença da religião
em todas as culturas serve de argumento para o autor protestante sustentar a
disposição natural para o conhecimento religioso. O recurso à adoração de
ídolos é uma forma encontrada por vários povos para satisfazer sua necessidade
de uma divindade.
Àqueles
que afirmaram na época de Calvino que a religião era invenção humana, o autor
respondia que mesmo que os povos tenham inventado muitas formas de religião,
mas todas as elas foram motivadas pelo sensus
divinitatis. Calvino não deixa lugar para a possibilidade do ateísmo:
Isto, sem dúvida, será sempre evidente aos que
julgam com acerto, ou, seja, que está gravado na mente humana um senso da
divindade que jamais se pode apagar. Mais: esta convicção de que há algum Deus
não só é a todos ingênita por natureza, mas ainda que lhes está encravada no
íntimo, como que na própria medula, que a contumácia dos
ímpios é testemunha
qualificada, a saber,
lutando furiosamente,contudo não
conseguem desvencilhar-se do medo de Deus.[4]
João Calvino recebe
influência da explicação de Tomás e desenvolve sua tese. Esta dupla influência
recairá sobre o epistemólogo contemporâneo Alvin Plantinga que formulou o
Modelo Aquino-Calvino, base da Epistemologia Reformada que surgiu nos anos 80.
3.
Posição
de Alvin Plantinga
Segundo
Plantinga, as crenças religiosas são propriamente básicas mesmo que não sejam
inferidas de outras crenças que lhes servem como evidências.
Ele segue a posição de Calvino que
sustentava que existe um senso de divindade na mente humana que nos torna
imediatamente consciente de Deus. Seu modelo é chamado de Aquino-Calvino, pela
recepção dessas posições.
No
modelo de Calvino e Plantinga, as crenças religiosas são mais como crenças
perceptivas baseadas na experiência sensorial do que como teoremas geométricos
inferidos de axiomas mais básicos.
O conhecimento sobre Deus seria em
função do sensus divinitatis. Este sensus seria uma faculdade cognitiva que
garante a consciência religiosa mesmo sem os argumentos.
“Plantinga
define o sensus divinitatis como uma
faculdade cognitiva humana, natural, inata, voltada para a produção de crenças
sobre Deus.”
O indivíduo não tem controle e nem
consciência da atividade esta faculdade. Ela atua sob certas condições de
produção de crenças religiosas.
As condições apresentadas por
Plantinga são:
a)
Contemplação dos espetáculos da
natureza;
b)
A sensação de culpa moral;
c)
A necessidade de proteção.
O
modelo de Plantinga pressupõe que as circunstâncias funcionam como entradas na
mente que se convertem em saídas como crenças religiosas.
Hans Van Eyghen e os naturalistas
não admitem a existência de uma faculdade específica para a produção de crenças
religiosas porque não pode ser demonstrado fisiologicamente (VAN EYGHEN, 2016).
4.
Posição
de Linda Zagzebski
Zagzebski parte sua
epistemologia religiosa da tradição católica. As crenças exercem um papel
central na religião. São essas crenças também que nos permitem diferenciar uma
religião da outra. De modo geral, elas buscam responder aos problemas
fundamentais da humanidade. Religião é um tipo de prática no qual as crenças
vêm primeiro, depois segue a prática, incluindo as emoções, atos e ritos que
derivam sua justificação da justificação independente das crenças religiosas.
William Alston
considera que a experiência religiosa pode justificar as crenças religiosas
para aquelas pessoas que possuem aquelas experiências ao modo de justificação a
partir da experiência sensorial. É uma postura que atrai os empiristas. Porém,
a religião é uma prática coletiva e o conhecimento vinculado em determinada
religião é adquirida na comunidade religiosa a partir de um ensinamento
autorizado.
Não se pode afirmar de
todo que o conhecimento religioso parte unicamente de uma experiência pessoal. O
ponto de partida é a confiança. A confiança em nós mesmos nos conduza a confiar
no que outros também nos dizem. A autoconfiança ampara a confiança na
autoridade e na sabedoria de alguns indivíduos. Existe um desejo natural de
verdade e há uma crença natural que o desejo natural pela verdade pode ser
satisfeito.
Como não confiamos em
tudo que nós pensamos, buscamos avaliar outras pessoas que parecem mais
confiáveis. A emoção da admiração é uma das emoções que nos leva a confiar nas
crenças alheias. A admiração nos leva a aderir às crenças alheias. A sabedoria,
porém, está mais depositada na comunidade do que nos indivíduos. A confiança em pessoas sábias e na sabedoria
da comunidade é a base da autoridade epistêmica. A confiança na autoridade nos
leva ao conhecimento.
O testemunho da autoridade
é um meio de conhecimento. O conhecimento religioso é um tipo que pode ser
adquirido através da imitação daqueles cuja sabedoria nós admiramos. A imitação
de hábitos religiosos de pessoas sábias pode ser passada de geração em geração
e constituir uma verdade importante para as pessoas.
A crença religiosa pode
ter uma base racional. Racionalidade, conforme Zagzebski, é a capacidade de
falar para as outras pessoas e fazer-se entender não importa quais sejam estas
pessoas. A posição de Platinga não é suficiente porque se sustenta
exclusivamente na intuição do indivíduo. Zabgzebski considera que o
conhecimento religioso depende em grande parte da confiança em autoridades e
protótipos (exemplars) de sabedoria,
mas é um conhecimento como os demais.
Referências
AQUINO,
Tomás. Suma contra os Gentios. Volume
II, p. 690-691.
CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. Volume
I. Edição Clássica, p. 53-55.
PINHEIRO,
Maurício Mota Saboya. Experiência Religiosa e Garantia da Crença na Existência
de Deus em Alvin Plantinga. Numen:
revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 9, n. 1, p. 93-110.
VAN EYGHEN, Hans.
There is no Sensus Divinitatis. Journal
for the Study of Religions and Ideologies, vol. 15, issue 45 (2016): 24-40.
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