segunda-feira, 20 de março de 2017

IV - Religião e Epistemologia

PRAMANAVARTIKKA: UMA TEORIA DO CONHECIMENTO NO PENSAMENTO BUDISTA

PRAMANAVARTIKKA: A THEORY OF KNOWLEDGE IN
 BUDDHIST THOUGHT


José Aristides da Silva Gamito

1.    Introdução

Pramanavarttika significa “Comentário sobre o Conhecimento Válido”. É uma das obras mais importantes do budismo sobre epistemologia e lógica. A obra foi escrita no século VI pelo brâmane Dharmakirti.
O tratado foi escrito em 2.000 versos mnemônicos, dividido em quatro capítulos que tratam de inferência, conhecimento válido, percepção sensorial e silogismo. É uma obra de referência no budismo sobre o tema.[1]
Dharmakirti (600-610 d. C.) estudou as obras de Dignaga no monastério de Nalanda, na Índia. Por se destacar neste campo do conhecimento, escreveu Os Sete Tratados sobre o Pramana, dentre eles está o Pramanavarttika. Dharmakirti e Dignaga influenciaram o pensamento budista. Suas maiores contribuições são sobre o raciocínio inferencial. Eles são classificados como lógicos porque desenvolveram um sistema de Lógica e de Epistemologia calcado sobre uma nova forma de raciocínio dedutivo.
Além disso, a obra de Dharmakirti é usada como um modelo de análise das escrituras budistas.  E serviu de base para a fundamentação epistemológica do currículo de muitos monastérios tibetanos.[2]

2.    Epistemologia e Lógica Budistas

O Pramanavarttika contém pontos fundamentais de Lógica. Dentre eles estão os reconhecedores inferenciais corretos e os perceptores diretos corretos que são ferramentas facilitadoras do entendimento. Eles são a consciência conceitual que compreende os principais objetos na dependência sobre razões corretas. Esses elementos são fundamentais para a prática budista porque auxilia o fiel a eliminar falsas percepções são responsáveis pelos problemas humanos.
O silogismo budista tem quatro partes: 1 – Sujeito; 2 – Predicado; 3 – Razão correta; 4 – Exemplo. Veja a seguir um deles:

A respeito do sujeito, o corpo físico, ele é impermanente, por que ele é um produto de suas próprias causas e condições. Por exemplo, como o último momento de uma chama de uma vela.

No caso acima, “corpo físico” é o sujeito; “impermanente” é o predicado e “um produto de suas próprias causas e condições” é a razão correta, e “o último momento de uma chama de uma vela” é o exemplo.[3] Este silogismo se distingue do grego que é composto por três elementos: Premissa maior, premissa menor e conclusão. O exemplo clássico é o seguinte:


Todo homem é mortal,
Sócrates é homem,
Logo, Sócrates é mortal.

            A obra Pramanavarttika desenvolve os princípios da lógica em quatro capítulos: Inferência para o próprio benefício, estabelecimento do Pramana, perceção direta e inferência para o benefício dos outros.
No primeiro capítulo “Inferência para o próprio benefício”, Dharmakirtti introduz o silogismo correto, sua estrutura, categorias e definições. O segundo homenageia Buda como um reconhecedor válido (Pramana) e comenta alguns princípios budistas para demonstrar que a literatura Pramana é útil a assuntos religiosos. Os dois últimos capítulos desenvolvem os oito pontos fundamentais da lógica.[4]
Dois tipos de conhecimento são expostos na epistemologia budista: Conhecimento direto[5] e conhecimento inferencial. Há alguns fenômenos que podem ser conhecimento somente através da inferência. Isso depende de silogismos corretos.
No budismo há várias interpretações em torno do problema do conhecimento. O conhecimento é despertado pelo contato com os objetos externos. Os estímulos dos cinco sentidos se transformam em sensações. A consciência se apropria delas e procura entendê-las a partir das experiências acumuladas. Por outro, existe uma percepção mental que chega através do manas. Este estímulo vem através de uma imagem ou idéia.
O objeto e a consciência do objeto são a mesma coisa. O conteúdo da consciência não vem de fora, mas está inserido na própria consciência. O ser das coisas coincide com o ser da consciência. O mundo empírico é ideal e a objetividade é uma categoria da consciência. A descoberta intuitiva da verdade faz superar o plano da ilusão.
O conhecimento se revela por sua natureza e é uma síntese inseparável de percipiente, percebido e percepção. A escola Sautrantika discorda desse idealismo e defende a existência objetiva do real. Nesse caso a origem do conhecimento está na impressão dos objetos que forma representações e através desta induzimos a existência dos objetos.[6]
Dharmakirti considerava como meio de conhecimento a percepção mental (manasa pratyaksa) além da sensorial. Segundo Dharmakirti (apud Tucci):

A percepção mental segue imendiatamente a percepção sensorial que constitui sua própria causa homogênea imediatamente precedente: Esta é cooperante com o objeto que imediatamente segue o objeto próprio da percepção sensorial”.[7]

O objeto e o conhecimento sensorial produzem uma única sensação mental.  A outra forma de percepção apontada por Dharmakirti é a experiência interior (svasamvedana). Ela é uma autoconsciência infalível da nossa pessoa que temos através dos estados de dor e de prazer.[8]

3.    Considerações finais

     Como brevemente exposto acima, nas escolas indianas podem se encontrar conceitos, doutrinas e conhecimento similares à filosofia ocidental. Tratamos exclusivamente da tradição de Dharmakirti, mas as escolas Nyaya, Mimamsa, Sankhya e Jaina também trataram do tema. Muito se frisa no meio acadêmico que a filosofia é um fenômeno especificamente grego. Isso é parcialmente verdadeiro porque não se pode atribuir esta especificidade de produção racional unicamente aos gregos. Outros povos produziram conhecimentos similares. É claro o rótulo “filosofia” não será exato para denominá-lo, mas isso não minimiza sua importância.
     Pouco se conhece do pensamento indiano no Ocidente, chegam até nós muitos estudos preocupados exclusivamente com doutrina religiosa ou técnicas de meditação. O conhecimento de um pensamento sistemático ainda é recente. Poderíamos repetir a questão: Existe uma filosofia indiana? Budista? Ainda encontraremos muita polêmica em torno disso. Mas é inegável a contribuição dos indianos antigos para a história do pensamento.

Referências

BRITANNICA, Encyclopedia. Pramanavarttika. Disponível em: https://global.britannica.com/topic/Pramana-varttika. Acesso em 20 jul. 2017.

WANGMO, Kelsang. The Second Chapter of Pramanavarttika. Dharamsala: IBD, 2016.

TUCCI, Giuseppe. Storia della Filosofia Indiana. Roma: Laterza, 2005.




[1] Pramanavarttika. Disponível em: https://global.britannica.com/topic/Pramana-varttika. Acesso em 20 jul. 2017.
[2] WANGMO, Kelsang. The Second Chapter of Pramanavarttika. Dharamsala: IBD, 2016.
[3] WANGMO, 2016, pp. 5-7.
[4] WANGMO, 2016, pp. 8-10.
[5] Pratyaksa, em sânscrito, significa “percepção; aquilo que cai sob os olhos”.
[6] TUCCI, Giuseppe. Storia della Filosofia Indiana. Roma: Laterza, 2005, pp. 130-133.
[7] TUCCI, 2005,  p. 160.
[8] TUCCI, 2005, p. 162.

segunda-feira, 6 de março de 2017

III - Religiao e Literatura

12-05 E3
Epifanio. Crédito: Patriarcado de Antioquia.



EVANGELHO DE EVA SEGUNDO O PANARION DE EPIFÂNIO
EVE’S GOSPEL ACCORDING TO PANARION OF EPIPHANIUS

José Aristides da Silva Gamito[1]

1.    Introdução

A literatura cristã antiga é ainda bastante desconhecida fora do ambiente acadêmico. Muitas pessoas ignoram o fato de que os “evangelhos” vão além dos quatro que compõem o Novo Testamento. Dentre uma variedade de textos denominados “evangelhos” apenas quatro foram canonizados (Mateus, Marcos, Lucas e João). Alguns desses textos antigos nos foram transmitidos integralmente, mas a grande maioria sobreviveu em fragmentos ou em citações de outros autores cristãos. No presente artigo, identificaremos alguns desses evangelhos esquecidos na obra Panarion de Epifânio de Salamina.
Neste levantamento não entraremos no mérito da ortodoxia, heterodoxia ou heresia dessas obras. Nós as consideraremos como literatura cristã antiga e indicarmos o que sobreviveu delas. Seu valor específico é perceber a pluralidade do cristianismo primitivo. Dos evangelhos citados, faremos comentários especificamente sobre o Evangelho de Eva.

2.    Epifânio de Salamina e a obra Panarion

            Epifânio de Salamina nasceu por volta de 310. Recebeu educação monástica e foi bispo em Chipre. Assumiu fortes polêmicas anti-heresias. Consideravam-se heresias aquelas doutrinas que diferiam do cristianismo oficial. Entre 374 e 377 escreveu a obra Panarion em três volumes. O intuito do livro é combater 80 heresias. São heresias de seu tempo e também anteriores ao cristianismo.[2]
Na seção 26 da obra Panarion há algumas referências a textos gnósticos. Dentre eles, aparecem menções a evangelhos. Há uma passagem curta do Evangelho de Eva (26, 3.1). Uma referência ao Evangelho de Filipe (26, 13.2). Aparece no 26.2,5 uma menção ao Evangelho da Perfeição, mas sem nenhuma citação. E o Evangelho de Judas (38. 1,5). Em uma única obra temos conhecimento da existência de vários evangelhos não-canônicos[3].
Os Evangelhos de Filipe e de Judas sobreviveram integralmente. São também mais conhecidos. Daremos atenção específica ao Evangelho de Eva. Já o Evangelho da Perfeição é apenas mencionado, não há citações para que possamos conhecer seu conteúdo. Harnack e Hennecke propõem que o dito anônimo de Hipólito de Roma na obra Refutação de Todas as Heresias seja atribuído ao Evangelho da Perfeição[4]: “O começo da perfeição é o conhecimento do homem, o conhecimento de Deus é a completa perfeição” (III, 55).[5]

3.    O Evangelho segundo Eva

            Epifânio de Salamina cita o seguinte trecho deste Evangelho:

Pus-me de pé numa alta montanha e vi um homem alto e outro homem de baixa estatura e ouvi como se fosse um som de trovão e fui mais próximo para ouvir. Então, ele me falou: “Eu sou tu e tu és eu e onde tu estiveres, lá estou eu, e eu estou espalhado em todas as coisas, e de onde tu quiseres, tu me recolhes, mas quando tu me recolhes, então, tu te recolhes a ti mesmo”. Tradução nossa. (Panarion 26. 3,1).

Na mesma seção, aparece uma segunda citação anônima que pode ser atribuída ao Evangelho de Eva:

 “Eu vi uma árvore que produz frutos doze vezes por ano, e ele me disse: “Essa é a Árvore da Vida”” tradução nossa. (Panarion 26. 5,1).

O primeiro trecho pode ser comparado a dois logia do Evangelho de Tomé. O logion 108 diz o seguinte: “Aquele que se saciar em minha boca tornar-se-á como eu. Eu também me tornarei como ele e as coisas ocultas lhe serão reveladas”. Os trechos seguintes são semanticamente comparáveis: “Eu sou tu e tu és eu e onde tu estiveres, lá estou eu...” (Evangelho de Eva) / “Aquele que se saciar em minha boca tornar-se-á como eu. Eu também me tornarei como ele...” (Evangelho de Tomé). Há sugestão de uma identificação entre o divino e o humano.
 O logion 77 do Evangelho de Tomé, que diz o seguinte: “Eu sou a luz que está sobre todos eles. Eu sou o Todo: o Todo saiu de mim e o Todo chegou até mim. Se rachardes a madeira, eu estarei lá; se erguerdes a pedra lá me encontrareis”. A ubiquidade do divino aparece paralelamente nos termos: “...e eu estou espalhado em todas as coisas, e de onde tu quiseres, tu me recolhes...” (Evangelho de Eva)/ “. Se rachardes a madeira, eu estarei lá; se erguerdes a pedra lá me encontrareis” (Evangelho de Tomé).
As duas leituras intertextuais permitem-nos deduzir um tema do Evangelho de Eva. Assim como nas leituras platonizantes e gnósticas do cristianismo, sugere-se uma identificação entre o divino e humano que se dá por meio do conhecimento dos ensinamentos de Cristo. Além disso, existe um transfundo panenteísta nos textos: O divino está em todas as coisas da natureza basta procurar nelas para encontrá-lo.
O segundo trecho ser lido paralelamente com Apocalipse 22,2: “No meio de sua praça, e de um lado e de outro do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto de mês em mês; e as folhas da árvore são para a saúde das nações”. As duas perícopes dizem exatamente a respeito da árvore da vida que frutifica o ano todo. Essa árvore faz parte da nova criação. Se este for o sentido de renovar a criação nos fins dos tempos, temos uma temática apocalíptica no Evangelho de Eva.

Referências

EPIPHANIUS, Saint. The Panarion of Epiphanius of Salamina. Book I. Translated by Frank Williams. Boston: Brill, 2009.

MORESCHINI, Claudio e NORELLI, Enrico. Manual de Letteratura Antica Greca e Latina. Brescia: Editrice Morcelliana, 1999.

ROMANUS, Hippolytus. The Refutation of All Heresies.




[1] Professor de Filosofia e Mestrando em Ciências das Religiões. E-mail: joaristides@gmail.com.
[2] MORESCHINI, Claudio e NORELLI, Enrico. Manual de Letteratura Antica Greca e Latina. Brescia: Editrice Morcelliana, 1999, pp. 234-235.
[3] EPIPHANIUS, Saint. The Panarion of Epiphanius of Salamina. Book I. Translated by Frank Williams. Boston: Brill, 2009, p. 26.
[4] The Gospel of Perfection. Disponível em: http://www.earlychristianwritings.com/perfection.html
[5] ROMANUS, Hippolytus. The Refutation of All Heresies. III, 55.