O cristianismo primitivo era dividido em
vários grupos, dentre eles estavam os valentinianos e os setianos. A
importância de se estudar esses dois cristianismos é a literatura que deixaram.
As duas fontes privilegiadas para o conhecimento das crenças dos setianos e dos
valetinianos são as informações dos padres apologistas e dos códices
descobertos em 1945 em Nag Hammadi no Egito.
Os padres apologistas apresentam suas
ideias como doutrinas falsas, como “heresias”, portanto, é uma biografia
contada pelos inimigos. Os textos de Nag Hammadi vieram contrabalancear essas
informações, trazendo a voz dos próprios cristãos gnósticos. O cristianismo antigo
era mais complexo do que se imagina. A posição ortodoxa sobrevivente é que
contou a sua versão e a autenticou. Para fins acadêmicos, se quisermos
pesquisar o cristianismo primitivo enquanto fenômeno cultural, temos de
revisitar essas vozes silenciadas.
Apresentamos, portanto, os traços
característicos e as obras principais das literaturas setiana e valentiana.
Literatura Setiana
Os textos setianos são marcados pela
ênfase na história dos descendentes de Set; a doutrina da sabedoria divina, sua
queda e restauração; rito batismal; especulações que relacionam Cristo com Set
e com Adão e uma visão do mundo de fundo platônico.
As obras setianas foram compostas num
período entre 100 a 250. Segundo John
Turner, o setianismo que era uma seita já existente, se cristianizou no século
II. Eles identificaram o conceito de Logos com Cristo. Esta noção aparece no
Evangelho canônico de João. As obras
refletem esta doutrina sobre Cristo: O Evangelho dos Egípcios, o Apócrifo de
João, a Protennoia Trimórfica e Melquisedec.
O Apocalipse
de Adão reflete a doutrina setiana do batismo. A contemplação e o êxtase
místico são temas das obras Zostrianos,
Marsenes, Allogenes e As Três
Estelas de Set.
Literatura valentiniana
As obras que remontam ao próprio
iniciador do cristianismo valentiniano são o Evangelho da Verdade, os Salmos, a Epístola de Agatópus, a Espístola
dos Anexos, Sobre os Amigos, Sobre as Três Naturezas e Sophia. Há entre
estes também o Evangelho de Filipe e a
Epístola de Pedro a Filipe. Vários autores valetinianos deixaram suas
obras, chegando a constituir uma escola literária como Ptolomeu, Heracleão,
Marcos, Teódoto, Florino e Teótimo.
Este movimento foi atuante até o
século IV. Essas obras contêm uma complexa mitologia na qual aparece as figuras
de Cristo e da Sabedoria Divina. Para os valentinianos, Cristo era filho da
Sabedoria Divina.
Considerações gerais
Segundo Bart Ehrman, o gnosticismo
influenciou doutrinas cristãs que se tornaram ortodoxas. A doutrina da Trindade
tem similaridades com a crença gnóstica de várias personalidades para Deus, a
noção de integração entre mundo natural e sobrenatural, a ideia de Deus como
uma pessoa relacional. Algumas dessas doutrinas são recepções ortodoxas de
ideias gnósticas ou são defesas de cosmovisões gnósticas.
Portanto, a compreensão do
cristianismo como um fenômeno social, cultural e histórico depende também
dessas fontes gnósticas. Esta é a nossa contribuição para estimular o estudo da
literatura do cristianismo primitivo.
Referências
ERHMAN, Bart. The
Orthodox Corruption of Scripture. NY: Oxford University Press, 1993.
TURNER, John. Sethian
Gnosticism: A literary history. S.d.e.
A concepção de um
cristianismo único e homogêneo soa como um mito quando falamos do cristianismo
dos primeiros séculos. As diferenças doutrinárias entre os diversos grupos, os
costumes das diferentes regiões do Império Romano, tudo nos leva a desenhar um
quadro desta religião como multifacetária. As comunidades cristãs antigas
apresentavam variadas formas de vivenciar o cristianismo.
Os primeiros
missionários levaram o cristianismo para as diversas províncias do
Império Romano. Entre fins do século II
a início do século III, já havia cristãos na Espanha. Isso representa o extremo
da expansão do movimento. Toda esta extensão territorial e esta variedade
cultural geraram muitas polêmicas entre cristãos ortodoxos e heterodoxos. Os
autores antigos como Hipólito de Roma, Ireneu de Lião e Epifânio de Esmirna
escreveram críticas duras a pessoas que pregavam doutrinas diferentes e
formavam comunidades independentes.
Os
cristianismos antigos
Os principais grupos cristãos antigos
são:
Gnosticismo:
É uma corrente cristã que considerava que a salvação se dava pelo conhecimento.
Um dos cristãos gnósticos mais influentes foi Valentim de Alexandria (+160). O gnosticismo
compreendia vários grupos.
Valentianismo:
É um dos ramos mais notáveis do gnosticismo fundado por Valentim de Alexandria.
Encratismo:
É um cristianismo com práticas rigorosas como o vegetarianismo, a sobriedade alcoólica
e o celibato.
Ebionismo:
Era um grupo cristão que observava muitos pontos da lei judaica e negava a preexistênica
de Jesus.
Carpocriacianismo:
É um movimento cristão do século II iniciado por Carpócrates de Alexandria que considerava
Jesus como filho biológico de José e rejeitava o Antigo Testamento.
Setianismo:
É um movimento cristão que identificava Cristo com Seth e deixou uma extensa literatura
inclusive textos apócrifos.
Marcionismo:
Era um movimento cristão de base paulina, rejeitava o Antigo Testamento, tinha
uma edição própria de Evangelho e uma moral severa.
Maniqueísmo:
Era um grupo que acreditava que o universo era composto por um reino do bem e outro
do mal, acreditavam num Cristo celestial.
Considerações
gerais
Houve divisão entre os
cristãos quanto à relação entre a Lei e a graça, quanto à aceitação do Antigo
Testamento, quanto à natureza de Cristo. Foram dezenas de temas que geraram
divisões. Epifânio de Salamina elenca em sua obra Panarion cerca de 25 grupos
cristãos heterodoxos.
As controvérsias sobre
a identidade de Cristo foram um dos temas que mais gerou divisões, as chamadas
“controvérsias cristológicas”. Os concílios que aconteceram a partir do século
III tinham como objetivo superar essas divisões através de normatizações e
declarações de dogmas para toda a Igreja.
Por esta razão, os
estudiosos Walter Bauer e Bart Ehrman consideram que o cristianismo primitivo
era um conjunto de cristianismos. Havia várias versões das crenças cristãs. O
que fizeram os concílios do século II ao século IV foi tentar homogeneizar uma
vertente dogmática-padrão, “a ortodoxia católico-ortodoxa”.
Esta ortodoxia foi expressa pelos
concílios ecumênicos. A maioria dos cristianismos heterodoxos, chamados de
“heresias”, acabou não sobrevivendo.
üGrande influência do platonismo: o mundo visível é
uma cópia do mundo real das ideias; e da síntese de Fílon entre filosofia,
como método de interpretação e revelação.
üForte tendência à interpretação alegórica das
Escrituras (especialmente sob Orígenes).
üSua doutrina do Logos, como uma ponte entre Deus e
o mundo, é uma tentativa de reconciliar o evangelho com a filosofia grega.
üTendência para exaltar o elemento divino em Cristo
à custa de sua humanidade.
üDefesa firme do título theotokos (Mãe de Deus) aplicada
a Maria.
üConfrontado com a escola de Antioquia, que a
acusou de carnal por aderir à letra da Escritura.
Antioquia
da Síria
Malquião (+ 270)
Diodoro de
Tarso (+394)
Luciano de
Antioquia (+312)
Ário (256-336)
Eusébio de
Nicomédia (+342)
Isidoro de Pelúsio
(+435)
João
Crisóstomo (347-407)
Teodoro de
Mopsuéstia (350-428)
Teodoreto de
Ciro (393-458)
Nestório (381-c.450)
üForte tendência à interpretação
histórico-gramatical das Escrituras.
üGrande interesse na humanidade de Cristo e no
Jesus histórico.
üRelutante em usar o título Theotokos (Mãe de Deus)
aplicado a Maria.
üÊnfase em teologia pastoral e exegese científica.
üConfrontado com a escola de Alexandria, que ele
acusou de destruir o valor histórico da Bíblia, transformando-o em mitologia.
üAtingiu seu apogeu no século IV.
Cesareia
da Terra Santa
Orígenes (185-253)
Pânfilo (+310)
Gregório, o
Taumaturgo (213-270)
Eusébio de
Cesareia (263-339)
Basílio, o
Grande (329-279)
Gregório de
Nissa (330-394)
Gregório de
Nazianzo (330-390)
üContinuava a linha de Alexandria, porém, mais
moderada.