sexta-feira, 29 de junho de 2018

Religião e Violência


SACRIFÍCIO RITUAL:
 VIOLÊNCIA COMO MEIO DE COMUNHÃO COM O DIVINO

José Aristides da Silva Gamito[1]


1.    Conceito de sacrifício ritual

No contexto religioso antigo, sacrifício é uma oferenda que se faz à divindade e quanto mais valiosa for, melhor será a satisfação do homenageado. As oferendas normalmente não eram desinteressadas, o crente pretendia alcançar um benefício da divindade. [2] O que é mais choca com a mentalidade contemporânea é o fato de que o “mais valioso” era a vida de um animal ou de um ser humano.
Segundo Tylor (apud CABRERA) a origem da prática sacrifical está numa idéia de barganha com deus. O crente oferece um suborno para que a divindade lhe responda prontamente. Posteriormente, a idéia evolui para outros sentidos. Robertson Smith (apud CABRERA) considera que a origem da prática sacrifical se apóia na finalidade de comunhão com o essencial. Principalmente, quando os crentes se alimentam de parte da vítima sacrificada.[3] Na consideração de Cardoso, “a prática sacrifical apresenta como padrão a destruição ou a remoção de algo de seu contexto original terreno. Em busca de benefícios específicos”.[4]

2.    Sacrifício e violências nas religiões

As religiões antigas como o judaísmo, o hinduísmo e as religiões gregas valorizavam o sacrifício físico.  O fato não permanece as religiões reformadas como o cristianismo, o islamismo e o budismo. O deus Yahweh é designado como “Senhor dos exércitos” e está sempre envolvido em massacres e episódios sangrentos.  Em Números 16, 23-35, ele queima duzentos e cinquenta homens como num sacrifício.[5]
O holocausto judaico exigia o esquartejamento e queima da vítima sobre o altar. Não havia o costume de consumir a carne da oferenda. Não falta, porém, situações de sacrifício humano no Antigo Testamento. O pedido de Yahweh para Abraão sacrifical Isaac pretende estabelecer uma comunhão entre crente e divindade.[6]
O Antigo Testamento apresenta o episódio de Jefté. Este promete a Deus que, se vencesse a guerra, ofereceria em holocausto aquilo que primeiro aparecesse na porta saindo da sua casa. E foi sua filha. Ele cumpriu sua promessa, matando-a num sacrifício ritual de seres humanos (Jz 11, 29-40). Em 2 Samuel 1-9, Davi mandou enforcar em sacrifício sete homens para aplacar uma seca. Apesar de a lei mosaica condenar os sacrifícios de crianças ao deus Moloque, mesmo assim houve sacrifícios humanos dirigidos a Yahweh.
 No texto da Ilíada, os deuses matam os filhos de Niobe.[7] Nos tempos védicos, acontecia sacrifícios rituais na Índia. Porém, a dimensão do sacrifício muda dentro do cristianismo por ser uma religião pacifista. O mesmo ocorre na Índia com o budismo e o jainismo, o princípio de não-violência (ahimsa) fecha espaço para os sacrifícios sangrentos.[8]
Os casos se sacrifício rituais não se restringem aos casos da Europa e da Ásia, temos exemplos também na América pré-colonial. A prática de sacrifícios humanos dos astecas é um dos costumes religiosos mais violentos da história.  Eles sacrificavam por vez milhares de pessoas que eram capturadas nas guerras ou de Tenochtitlan (sede do Império Asteca). Os registros que temos não são da antiguidade, são do século XVI. A percepção desses hábitos era espantosa pelos invasores espanhóis. Porém, a violência sempre esteve e está aliada à crença religiosa. Naquele mesmo período, na Europa aconteciam massacres de disputas religiosas entre católicos e protestantes. [9]
Considerando esses relatos dos cronistas espanhóis, os astecas sacrificavam anualmente uma média de 15 mil pessoas para oferecer aos deuses. Desses dados temos a informação de que uma em cada cinco crianças asteca era sacrificada. Portanto, trata-se de uma religião sustentada sob a violência dos sacrifícios rituais. O fato mais citado é a festa de dedicação do Templo Maior de 1487, durante a qual foram sacrificadas apenas em quatro dias 20 mil pessoas.[10] Os números contam com o exagero dos espanhóis que precisavam justificar o massacre dos astecas, mas, de qualquer modo, esses indígenas sacrificavam grande número de pessoas.
No Brasil, tivemos entre os tupinambás a antropofagia ritual. Os tupinambás matavam ritualmente os prisioneiros de guerra e os comia. Por meio deste gesto, a tribo se apropriava das virtudes do guerreiro que era devorado.[11] Não se trata de um sacrifício sobre um altar, mas de um sacrifício humano em favor do crescimento físico e espiritual da coletividade. Os prisioneiros capturados eram mantidos vivos na aldeia até o dia do ritual e recebiam um colar que os marcava. Alguns ficavam até anos vivendo na aldeia e recebia mulheres. Porém, se os prisioneiros tivessem filhos com as mulheres tupinambás, esses filhos deveriam ser comidos também.
No sacrifício ritual humano tupinambá há um sentido diferente dos demais casos elencados neste artigo. Os indígenas realizavam uma festa com muita bebida, enfeitavam-se, e levavam o prisioneiro para a praça da aldeia e o matavam a pauladas na cabeça. Em seguida, seu corpo era esquartejado, assado e a carne era distribuída entre os presentes. Neste ritual não havia uma troca com deus e nem menos oferenda. Os índios o realizavam por motivo de honra e de vingança e o sentido religioso é o de assimilação das virtudes do prisioneiro.[12]

3.    Considerações teóricas

De modo geral, os deuses antigos possuem fortes traços antropomórficos, são ciumentos, não toleram a rebelião humana e precisam de sacrifícios para atender as preces dos homens. No hinduísmo, há traços de violência similares ao judaísmo e às religiões gregas. Portanto, as religiões se fundam e se sustentam em cima de assassinatos divinamente justificados. Segundo Sanchez, podemos identificar três tipos de violência religiosa: a) Origens das religiões contêm mitos com sacrifício dos próprios deuses; b) Há sacrifícios humanos com a intervenção divina; c) os sacerdotes promovem sacrifícios rituais para negociar ou entrar em comunicação com os deuses. A classe sacerdotal em muitos casos se manteve no poder e sustentou seus interesses a partir da violência religiosa.[13]
Sanchez conclui que “o sacrifício é a racionalização de la violência religiosa para fins práticos e morais. A violência divina e heróica são puras. Em certo sentido, não são contadas”. A violência que acontece como réplica da ação divina não se torna imoral. Ela tem a função de manter o vínculo entre o grupo e a divindade. Muitas vezes, ela cria as próprias condições míticas geradoras da crença do grupo.[14]

4.    Considerações finais

            As religiões comportam valores diversos e até contraditórios. Como produto cultural, elas podem promover a integração de algumas pessoas às custas do sacrifício da liberdade ou da vida de outras. A coletividade religiosamente justificada suprime o indivíduo. O costume dos sacrifícios rituais não é uma característica exclusiva de povos “primitivos” e “selvagens”. Está presente em vários culturas e tempos. As conquistas modernas de direitos humanos apenas intimidaram essas tendências.  Além disso, o cristianismo permitiu no Ocidente conviver com a laicização do Estado. Isso acaba gerando um contrapeso para a violência latente nas formas religiosas.
            O patrimônio religioso judaico-cristã tem a violência religiosa na sua fundação. Durante a história houve muitos episódios em que a violência era justificada em nome de deuses. A queima das vítimas da Inquisição não é propriamente um sacrifício ritual, mas se assemelha por que é uma expurgação do indivíduo indesejável para que a comunidade fique bem com o divino.
            Atualmente, a violência religiosa age no Ocidente humanista psicologicamente e socialmente. As pessoas têm sua identidade e sua ação sacrificadas psicologicamente/socialmente pelo isolamento social, pelo preconceito e pela intolerância. Esse tipo de violência dentro de um espaço ou grupo religioso é justificado como não-pecaminoso porque está se defendendo o nome de Deus. A violência religiosa continua intacta nos fundamentalismos religiosos.

Referências
AGNOLIN, Adone. Antropofagia ritual e identidade cultural entre os Tupinambás. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 45, n. 1, p. 131-185, 2002.

CABRERA, Isabel. El Lado Oscuro de Diós. Barcelona: Editorial Paidós, 1998.

CAMPOS, Fernanda de Fretitas. Antropofagia ritual dos povos Tupinambá nas cartas jesuíticas de meados do século XVI. Brasília: Universidade de Brasília, p. 25-28, 2013.

CARDOSO, Bianca Miranda. Depósitos de sacrifícios humanos “Terrenos de enterramentos formais”: Caso de Gordion e população gálata. Dissertação de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2014.

PENNOCK, Caroline Dodds. Mass Murder or Religious Homicide? Rethinking Human Sacrifice and Interpersonal Violence in Aztec Society. Historical Social Research, v. 37, n. 3, p. 276-302, 2012.

SANCHEZ, Sergio Valverde. Sobre el concepto de sacrifício en la Historia de las Religiones. Revista de Estudios, Universidad Costa Rica, n. 16, p. 83-98, 2002.






                       


[1] Filósofo e mestre em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória. E-mail: joaristides@gmail.com.
[2] CABRERA, Isabel. El Lado Oscuro de Diós. Barcelona: Editorial Paidós, 1998, p. 57.
[3] CABRERA, 1998, p. 58.
[4] CARDOSO, Bianca Miranda. Depósitos de sacrifícios humanos “Terrenos de enterramentos formais”: Caso de Gordion e população gálata. Dissertação de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2014, p. 59.
[5] SANCHEZ, Sergio Valverde. Sobre el concepto de sacrifício en la Historia de las Religiones. Revista de Estudios, Universidad Costa Rica, n. 16, 2002, p. 83-98.
[6] CABRERA, 1998, p. 58-59.
[7] SANCHEZ, 2002, p. 83-98.
[8]  SANCHEZ, 2002, p. 83-98.
[9] PENNOCK, Caroline Dodds. Mass Murder or Religious Homicide? Rethinking Human Sacrifice and Interpersonal Violence in Aztec Society. Historical Social Research, v. 37, n. 3, 2012, p. 276-302.
[10]  PENNOCK, 2012, p. 276-302.
[11] AGNOLIN, Adone. Antropofagia ritual e identidade cultural entre os Tupinambás. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 45, n. 1, 2002, p. 131-185.
[12] CAMPOS, Fernanda de Fretitas. Antropofagia ritual dos povos Tupinambá nas cartas jesuíticas de meados do século XVI. Brasília: Universidade de Brasília, 2013, p. 25-28.
[13] SANCHEZ, 2002, p. 83-98.
[14] SANCHEZ, 2002, p. 83-98.

Nenhum comentário:

Postar um comentário