SACRIFÍCIO
RITUAL:
VIOLÊNCIA COMO MEIO DE COMUNHÃO COM O DIVINO
José
Aristides da Silva Gamito[1]
1. Conceito de sacrifício ritual
No
contexto religioso antigo, sacrifício é uma oferenda que se faz à divindade e
quanto mais valiosa for, melhor será a satisfação do homenageado. As oferendas
normalmente não eram desinteressadas, o crente pretendia alcançar um benefício
da divindade. [2]
O que é mais choca com a mentalidade contemporânea é o fato de que o “mais
valioso” era a vida de um animal ou de um ser humano.
Segundo
Tylor (apud CABRERA) a origem da prática sacrifical está numa idéia de barganha
com deus. O crente oferece um suborno para que a divindade lhe responda
prontamente. Posteriormente, a idéia evolui para outros sentidos. Robertson
Smith (apud CABRERA) considera que a origem da prática sacrifical se apóia na
finalidade de comunhão com o essencial. Principalmente, quando os crentes se
alimentam de parte da vítima sacrificada.[3] Na
consideração de Cardoso, “a prática
sacrifical apresenta como padrão a destruição ou a remoção de algo de seu
contexto original terreno. Em busca de benefícios específicos”.[4]
2.
Sacrifício
e violências nas religiões
As
religiões antigas como o judaísmo, o hinduísmo e as religiões gregas valorizavam
o sacrifício físico. O fato não
permanece as religiões reformadas como o cristianismo, o islamismo e o budismo.
O deus Yahweh é designado como “Senhor dos exércitos” e está sempre envolvido
em massacres e episódios sangrentos. Em Números
16, 23-35, ele queima duzentos e cinquenta homens como num sacrifício.[5]
O
holocausto judaico exigia o esquartejamento e queima da vítima sobre o altar.
Não havia o costume de consumir a carne da oferenda. Não falta, porém,
situações de sacrifício humano no Antigo Testamento. O pedido de Yahweh para
Abraão sacrifical Isaac pretende estabelecer uma comunhão entre crente e
divindade.[6]
O
Antigo Testamento apresenta o episódio de Jefté. Este promete a Deus que, se
vencesse a guerra, ofereceria em holocausto aquilo que primeiro aparecesse na
porta saindo da sua casa. E foi sua filha. Ele cumpriu sua promessa, matando-a
num sacrifício ritual de seres humanos (Jz 11, 29-40). Em 2 Samuel 1-9, Davi
mandou enforcar em sacrifício sete homens para aplacar uma seca. Apesar de a
lei mosaica condenar os sacrifícios de crianças ao deus Moloque, mesmo assim
houve sacrifícios humanos dirigidos a Yahweh.
No texto da Ilíada, os deuses matam os filhos
de Niobe.[7] Nos
tempos védicos, acontecia sacrifícios rituais na Índia. Porém, a dimensão do sacrifício
muda dentro do cristianismo por ser uma religião pacifista. O mesmo ocorre na
Índia com o budismo e o jainismo, o princípio de não-violência (ahimsa) fecha espaço para os sacrifícios
sangrentos.[8]
Os
casos se sacrifício rituais não se restringem aos casos da Europa e da Ásia,
temos exemplos também na América pré-colonial. A prática de sacrifícios humanos
dos astecas é um dos costumes religiosos mais violentos da história. Eles sacrificavam por vez milhares de pessoas
que eram capturadas nas guerras ou de Tenochtitlan (sede do Império Asteca). Os
registros que temos não são da antiguidade, são do século XVI. A percepção
desses hábitos era espantosa pelos invasores espanhóis. Porém, a violência
sempre esteve e está aliada à crença religiosa. Naquele mesmo período, na
Europa aconteciam massacres de disputas religiosas entre católicos e
protestantes. [9]
Considerando
esses relatos dos cronistas espanhóis, os astecas sacrificavam anualmente uma
média de 15 mil pessoas para oferecer aos deuses. Desses dados temos a
informação de que uma em cada cinco crianças asteca era sacrificada. Portanto,
trata-se de uma religião sustentada sob a violência dos sacrifícios rituais. O fato
mais citado é a festa de dedicação do Templo Maior de 1487, durante a qual
foram sacrificadas apenas em quatro dias 20 mil pessoas.[10] Os
números contam com o exagero dos espanhóis que precisavam justificar o massacre
dos astecas, mas, de qualquer modo, esses indígenas sacrificavam grande número
de pessoas.
No
Brasil, tivemos entre os tupinambás a antropofagia ritual. Os tupinambás
matavam ritualmente os prisioneiros de guerra e os comia. Por meio deste gesto,
a tribo se apropriava das virtudes do guerreiro que era devorado.[11] Não
se trata de um sacrifício sobre um altar, mas de um sacrifício humano em favor
do crescimento físico e espiritual da coletividade. Os prisioneiros capturados
eram mantidos vivos na aldeia até o dia do ritual e recebiam um colar que os
marcava. Alguns ficavam até anos vivendo na aldeia e recebia mulheres. Porém,
se os prisioneiros tivessem filhos com as mulheres tupinambás, esses filhos
deveriam ser comidos também.
No
sacrifício ritual humano tupinambá há um sentido diferente dos demais casos
elencados neste artigo. Os indígenas realizavam uma festa com muita bebida,
enfeitavam-se, e levavam o prisioneiro para a praça da aldeia e o matavam a
pauladas na cabeça. Em seguida, seu corpo era esquartejado, assado e a carne
era distribuída entre os presentes. Neste ritual não havia uma troca com deus e
nem menos oferenda. Os índios o realizavam por motivo de honra e de vingança e
o sentido religioso é o de assimilação das virtudes do prisioneiro.[12]
3.
Considerações
teóricas
De
modo geral, os deuses antigos possuem fortes traços antropomórficos, são ciumentos,
não toleram a rebelião humana e precisam de sacrifícios para atender as preces
dos homens. No hinduísmo, há traços de violência similares ao judaísmo e às
religiões gregas. Portanto, as religiões se fundam e se sustentam em cima de
assassinatos divinamente justificados. Segundo Sanchez, podemos identificar três
tipos de violência religiosa: a) Origens das religiões contêm mitos com
sacrifício dos próprios deuses; b) Há sacrifícios humanos com a intervenção
divina; c) os sacerdotes promovem sacrifícios rituais para negociar ou entrar
em comunicação com os deuses. A classe sacerdotal em muitos casos se manteve no
poder e sustentou seus interesses a partir da violência religiosa.[13]
Sanchez
conclui que “o sacrifício é a racionalização de la violência religiosa para
fins práticos e morais. A violência divina e heróica são puras. Em certo
sentido, não são contadas”. A violência que acontece como réplica da ação
divina não se torna imoral. Ela tem a função de manter o vínculo entre o grupo
e a divindade. Muitas vezes, ela cria as próprias condições míticas geradoras
da crença do grupo.[14]
4.
Considerações
finais
As religiões comportam valores
diversos e até contraditórios. Como produto cultural, elas podem promover a
integração de algumas pessoas às custas do sacrifício da liberdade ou da vida
de outras. A coletividade religiosamente justificada suprime o indivíduo. O costume
dos sacrifícios rituais não é uma característica exclusiva de povos “primitivos”
e “selvagens”. Está presente em vários culturas e tempos. As conquistas
modernas de direitos humanos apenas intimidaram essas tendências. Além disso, o cristianismo permitiu no
Ocidente conviver com a laicização do Estado. Isso acaba gerando um contrapeso
para a violência latente nas formas religiosas.
O patrimônio religioso
judaico-cristã tem a violência religiosa na sua fundação. Durante a história
houve muitos episódios em que a violência era justificada em nome de deuses. A
queima das vítimas da Inquisição não é propriamente um sacrifício ritual, mas
se assemelha por que é uma expurgação do indivíduo indesejável para que a
comunidade fique bem com o divino.
Atualmente, a violência religiosa
age no Ocidente humanista psicologicamente e socialmente. As pessoas têm sua
identidade e sua ação sacrificadas psicologicamente/socialmente pelo isolamento
social, pelo preconceito e pela intolerância. Esse tipo de violência dentro de
um espaço ou grupo religioso é justificado como não-pecaminoso porque está se
defendendo o nome de Deus. A violência religiosa continua intacta nos
fundamentalismos religiosos.
Referências
AGNOLIN, Adone. Antropofagia
ritual e identidade cultural entre os Tupinambás. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 45, n. 1, p. 131-185,
2002.
CABRERA,
Isabel. El Lado Oscuro de Diós. Barcelona:
Editorial Paidós, 1998.
CAMPOS, Fernanda
de Fretitas. Antropofagia ritual dos povos Tupinambá nas cartas jesuíticas de
meados do século XVI. Brasília: Universidade de Brasília, p. 25-28, 2013.
CARDOSO, Bianca
Miranda. Depósitos de sacrifícios humanos
“Terrenos de enterramentos formais”: Caso de Gordion e população gálata. Dissertação
de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2014.
PENNOCK, Caroline Dodds. Mass Murder or Religious
Homicide? Rethinking Human Sacrifice and Interpersonal Violence in Aztec
Society. Historical Social Research, v. 37, n. 3, p.
276-302, 2012.
SANCHEZ, Sergio
Valverde. Sobre el concepto de sacrifício en la Historia de las Religiones. Revista de Estudios, Universidad Costa Rica,
n. 16, p. 83-98, 2002.
[1]
Filósofo e mestre em
Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória. E-mail: joaristides@gmail.com.
[2] CABRERA, Isabel. El Lado Oscuro de Diós. Barcelona:
Editorial Paidós, 1998, p. 57.
[3]
CABRERA, 1998, p. 58.
[4]
CARDOSO, Bianca Miranda. Depósitos de sacrifícios humanos “Terrenos
de enterramentos formais”: Caso de Gordion e população gálata. Dissertação
de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2014, p. 59.
[5] SANCHEZ, Sergio Valverde. Sobre
el concepto de sacrifício en la Historia de las Religiones. Revista de Estudios, Universidad Costa Rica,
n. 16, 2002, p. 83-98.
[6] CABRERA, 1998, p. 58-59.
[7] SANCHEZ, 2002, p. 83-98.
[8]
SANCHEZ, 2002, p. 83-98.
[9] PENNOCK, Caroline Dodds. Mass Murder or Religious Homicide? Rethinking
Human Sacrifice and Interpersonal Violence in Aztec Society. Historical Social Research, v. 37, n. 3,
2012, p. 276-302.
[10] PENNOCK, 2012, p. 276-302.
[11] AGNOLIN, Adone. Antropofagia
ritual e identidade cultural entre os Tupinambás. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 45, n. 1, 2002, p. 131-185.
[12] CAMPOS, Fernanda de Fretitas. Antropofagia
ritual dos povos Tupinambá nas cartas jesuíticas de meados do século XVI. Brasília:
Universidade de Brasília, 2013, p. 25-28.
[13] SANCHEZ, 2002, p. 83-98.
[14] SANCHEZ, 2002, p. 83-98.
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