terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Tomé nos textos apócrifos

UMA LITERATURA EM TORNO DE JUDAS TOMÉ:
DE APÓSTOLO INCRÉDULO A CONFIDENTE DE JESUS

José Aristides da Silva Gamito[1]
Resumo

A tradição do Novo Testamento apresenta o apóstolo Tomé como uma pessoa incrédula e com pouco destaque nesses textos, porém, desenvolveu-se na Síria Oriental uma literatura em torno de seu nome que o elevou a um apóstolo exemplar a ponto de identificá-lo como “gêmeo” de Jesus. São textos atribuídos a esse apóstolo: O Evangelho de Tomé, os Atos de Tomé e o Livro de Tomé, o Contendor. Há temas comuns que unem esses textos como à identificação de Tomé como gêmeo de Jesus, a busca da imortalidade, o estímulo ao ascetismo, o desprezo do mundo e incentivo ao retorno à condição primitiva do homem. Propomos identificar essa literatura tomasina e sua importância para o conhecimento do cristianismo primitivo.

Palavras-chave: Apóstolo Tomé, literatura, cristianismo primitivo.

1.    Introdução

Os escritos do Novo Testamento tiveram sua autoridade garantida através do costume que se tornou recorrente no cristianismo primitivo de atribuir escritos à autoria dos apóstolos. Os textos considerados canônicos têm como autores pessoas que conviveram diretamente com Jesus ou pessoas que conviveram com seus apóstolos. Isso se deve à função memorial destes escritos. Aqueles que aprenderam com Jesus ou daqueles mais próximos dele que tiveram acesso ao ensinamento original. São testemunhas do ensinamento ortodoxo.[2] Visto que, na diversidade do cristianismo dos séculos I e II, havia diferentes versões dos ensinamentos de Jesus que se esforçavam por hegemonia.
A autoridade depositária dos ensinamentos genuínos de Jesus é a figura do apóstolo. O termo apstolos-apostoloi ocorre 80 vezes no Novo Testamento. Paulo utiliza-o 30 vezes para embasar sua autoridade para ensinar em nome de Jesus.[3] Os evangelhos, atos, cartas e apocalipses canônicos e apócrifos são, em sua quase totalidade, atribuídos a um apóstolo.
Dentre os textos do cristianismo primitivo, há um conjunto de textos que circularam sob o nome do apóstolo Judas Tomé. São o Evangelho de Tomé, Atos de Tomé e o Livro de Tomé, o Contendor. Este corpus literário é chamado de Escola de Tomé. Eles apresentam temas comuns de uma variante de cristianismo típica da Síria.

2.    As duas faces do apóstolo Judas Tomé

O apóstolo Tomé é elencado no grupo dos doze apóstolos de Jesus e aparece em Mt 10, 2-4; Mc 3, 16-19; Lc 6, 13-16 e At 1,13. No Evangelho de João 20, 24-29, Tomé não é tomado como um dos melhores exemplos entre os seguidores de Jesus. Ele é descrito como um apóstolo incrédulo e que exige provas para acreditar na ressurreição. Porém, na tradição siríaca sobre a qual nos deteremos, constrói-se uma imagem de destaque de Tomé. As versões siríacas de João utilizam “Judas Tomé” no lugar de “Judas, não o Iscariotes”, na tentativa de dissociá-lo do Tomé do capítulo 20.[4]
No quarto evangelho, Tomé é um personagem polêmico. Em João 6,11, quando Jesus decide ver seu amigo Lázaro que tinha morrido, Tomé diz: “Vamos também nós, para morrermos com ele!”. O retorno de Jesus à Judeia colocava-o sob ameaça porque alguns pretendiam matá-lo por causa da acusação de blasfêmia. Mesmo não compreendendo a razão de Jesus voltar a Betânia, Tomé está decidido a participar do destino de Jesus.[5]
Mais adiante no capítulo 14, 5, Tomé afirma que não conhece o caminho para seguir Jesus. Esta interrogação induz Jesus a emitir uma sentença de identificação: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. No capítulo 20, 24-28, aparece a dúvida de Tomé quanto à ressurreição de Jesus. Ela aparece dentro de quadro otimista e de alegria dos discípulos com a notícia da ressurreição. A postura de Tomé contraria a lógica de Jesus que espera que se acredite sem provas. O episódio termina com uma confissão de Tomé reconhecendo Jesus como Senhor e Deus.[6]
O estigma de incrédulo é superado na literatura extracanônica. O apóstolo designado como Judas Tomé é uma tradição da Síria Oriental. Diferentemente do Novo Testamento, os escribas siríacos identificaram o Judas, filho de Tiago (Lc 6, 16), com Tomé. A dupla designação Judas Tomé aparece em textos de origem siríaca como a lenda do Rei Abgar, a Doutrina de Addai e os Sermões sobre a Fé de Efrém. Os Atos de Tomé descrevem esse apóstolo como o “gêmeo de Jesus”. Essa descrição foi preservada no meio de fala aramaica/siríaca.[7] Nesta tradição, ele é um herói positivo.
Judas Tomé é descrito como um apóstolo que evangelizou a Índia realizando pregações e milagres. De incrédulo ele se tornou o apóstolo protótipo e guardião das “palavras secretas” de Jesus chegando ao ponto de ser apontando como o gêmeo espiritual de Jesus. Ele se torna o gêmeo místico de Jesus, sua cópia perfeito. Em outras palavras, o discípulo por excelência.[8]

3.    Uma literatura sob a autoridade de Judas Tomé

            Em Nag Hammadi foram descobertos dois textos sob a autoridade de Judas Tomé que são o Evangelho de Tomé e o Livro de Tomé, o Contendor. As características desses textos os aproximam dos Atos de Tomé que narram as jornadas missionárias de Judas Tomé. São textos com diferentes gêneros. O Evangelho de Tomé se vincula a tradição de sentenças de sabedoria. O Livro de Tomé pertence ao gênero de diálogos da ressurreição. São diálogos que ocorrem em alguma cena pós-pascal entre Jesus e os discípulos. Os Atos de Tomé são semelhantes às biografias e novelas greco-romanas e também da literatura hagiográfica e martirológica.[9]

Tabela 01 – Identificação do corpus tomasino
Textos
Evangelho de Tomé
Atos de Tomé
Livro de Tomás, o Contendor
Dados autorais
Escrito entre o final do século I e até segunda metade do século II, em siríaco ou grego, em Edessa (STORI, p. 9).
Escrito em siríaco e em grego, (STORI, p. 14).
Texto copta encontrado em Nag Hammadi, proveniente da Síria (STORI, p. 14).
Gênero e conteúdo
Evangelho de sentenças, composto de 114 ditos (ensinamentos de Jesus).
Romance, narrativa da viagem missionária de Tomé para a Índia.
Trata-se de um diálogo entre Jesus Ressuscitado e seu discípulo Tomé.

Os textos que circularam sob a autoria de Tomé possuem conexões temáticas entre si. Fala-se, então, da existência de uma comunidade ou escola tomasina. Os Atos de Tomé e o Evangelho de Tomé apresentam o apóstolo como o destinatário das palavras secretas de Jesus e compartilham a idéia de que ele é o “gêmeo” de Jesus. Há vários paralelos entre essas duas obras (Evangelho de Tomé 37, 2/Atos de Tomé 14; 2/136; 22,4/147 e 75/12). Já o Livro de Tomé tem como paralelo com o Evangelho de Tomé a ideia de “descansar” e “reinar” (Livro de Tomé 145, 10-16).[10]
O logion 13 do Evangelho de Tomé e capítulo 39 dos Atos de Tomé colocam o apóstolo como um iniciado dos ensinamentos secretos de Jesus. Ele recebeu de Jesus ensinamentos aos quais os apóstolos não tiveram acesso. Por isso, no debate sobre a identidade de Jesus no logion 13, Tomé possui a resposta mais adequada.  No capítulo 47 dos Atos, o apóstolo Tomé afirma que Jesus revelou seus mistérios mais a ele do que aos outros discípulos. Os dois textos compartilham a informação de que Judas Tomé teve acesso a ensinamentos exclusivos dos mistérios de Jesus.[11] No Evangelho de Tomé 62, Jesus diz: “Eu digo meus mistérios a que são dignos dos meus mistérios”.[12] A semelhante entre estes dois textos levou a Puech a levantar a hipótese de que os Atos são dependentes do Evangelho de Tomé.[13]
 No Livro de Tomé ocorre a mesma situação. Jesus revela seus ensinamentos a Tomé. No prólogo, assim diz: “As palavras secretas que Jesus falou a Judas Tomé que, eu Matias, escrevi”. Se o compararmos com o prólogo do Evangelho, encontraremos palavras semelhantes: “Eis as palavras secretas ditas por Jesus, o Vivente, escritas por Judas Tomé, o Gêmeo”. Há apenas uma diferença entre quem escreveu, porém, o ouvinte especial de Jesus é o mesmo Judas Tomé.[14]
Dentre os textos da literatura tomasina, o Evangelho e os Atos possuem maior número de paralelos. Inclusive, os Atos parecem ser dependentes do texto do Evangelho. Há idéias que perpassam os dois textos representam uma mesma tradição: A insistência de que o desnudamento é condição para o conhecimento de Jesus (AtT 14/EvT 37, 2); o apelo para buscar e encontrar, descansar e reinar (AtT 136/EvT 2); a transformação da dualidade em unidade (AtT 147/EvT 22, 4) e a imagem da câmara nupcial como lugar dos eleitos (AtT 12/EvT 65). Risto Uro sugere que o evangelho influenciou o texto dos Atos.
A Escola de Tomé possui como traços teológicos a relação entre o cristão e Jesus cognominado de o Vivente. A autoconsciência, o conhecimento de Deus e a ênfase no discipulado marcam estes textos. De acordo com um esquema elaborado por Layton duas características são marcantes nesta escola: a) A presença do mito da origem divina do ego no Hino da Pérola (texto integrante dos Atos de Tomé); b) A idéia de que Tomé e Jesus possuem uma relação de geminidade divina.[15]
A existência de um conjunto de textos, com temática comum, origem comum e atribuída ao mesmo autor sustenta a tese de que houve uma comunidade ou pelo menos leitores ou cristãos que compartilharam esses textos.  Há diversas posições entre os estudiosos sobre o corpus literário tomasino: A afirmação da existência de uma comunidade de cristãos tomasinos (Puech); a existência de uma escola tomasina (Layton); uma tradição sobre Jesus anterior aos evangelhos canônicos (Riley) ou apenas leitores que compartilharam uma tradição sobre Jesus que circulou sob a autoridade de Tomé (Phillip Sellew; Risto Uro).[16]

4.    Considerações finais

            O corpus tomasino relê a tradição do apóstolo Tomé de uma maneira positiva e nova em relação à tradição canônica. Além disso, os textos tomasinos trazem importantes informações sobre cristianismo primitivo. Principalmente, de uma variante de cristianismo anterior à ortodoxia latino-ocidental. Trata-se de um cristianismo mais livre de hierarquia e da mediação sacerdotal para ter acesso à espiritualidade cristã. O estudo destes textos amplia a visão histórica, social e teológica das primeiras comunidades cristãs e de sua diversidade de pensamento e posturas.

Referências

GUTIÉRREZ, José Alfredo Noratto. Discípulos y Apóstolos em Cuarto Evangelio: una aproximación linguístico-semántica desde los Textos del Nuevo Testamento.  Franciscanum, n. 145, enero-abril 2007, p. 27-42.

KUNTZMANN, Raymond; DUBOIS, Jean-Daniel. Nag Hammadi: O Evangelho de Tomé. São Paulo: Edições Paulinas, 1990.

PATTERSON, Stephen J; BETHGE, Hans-Gebhard; ROBINSON, James M. The Fifth Gospel. London,/New York: T&T Clark, 2011.

ROBINSON, James M.(Ed.).  The Nag Hammadi Library. San Francisco: HarperCollins, 1990.

STORI, Eliana. Edessa, la Città Benedetta. ASE, v. 29, n. 1, 2012, p. 49-61.

___________. Tomaso in Siria: La Ricezione del Vangelo secondo Tomaso nella Letteratura Cristiana di Siria (Secolo II-V). Università degli Studi di Torino, Torino, 2010.

URO, Risto. Thomas: Seeking the Historical Context of the Gospel of Thomas. London/New York: T & T Clark, 2003.
                                                                                      







[1] Bacharel e licenciado em Filosofia, mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória. E-mail: joaristides@gmail.com.
[2] Com as expressões “ensinamento ortodoxo”, “ensinamento genuíno”, nós pretendemos afirmar aquela doutrina hipoteticamente mais próxima à oralidade do ministério de Jesus. É necessário ressaltar que esses termos são plurais e pode induzir a diferentes interpretações.
[3] GUTIÉRREZ, José Alfredo Noratto. Discípulos y Apóstolos em Cuarto Evangelio: una aproximación lingüístico-semántica desde los Textos Del Nuevo Testamento.  Franciscanum, n. 145, enero-abril 2007, p. 27-42.
[4] PATTERSON, Stephen J; BETHGE, Hans-Gebhard; ROBINSON, James M. The Fifth Gospel. London,/New York: T&T Clark, 2011, p. 30-31.
[5] STORI, Eliana. Tomaso in Siria: La Ricezione del Vangelo secondo Tomaso nella Letteratura Cristiana di Siria (Secolo II-V). Università degli Studi di Torino, Torino, 2010, p. 2.
[6] STORI, 2010, p. 4-5.
[7] URO, Risto. Thomas: Seeking the Historical Context of the Gospel of Thomas. London/New York: T & T Clark, 2003, p. 10-11.
[8] STORI, 2010, p. 37-38.
[9] URO, 2003, p. 8-9.
[10] URO, 2003,p. 17-19.
[11] URO, 2003, p. 11-12.
[12] KUNTZMANN, Raymond; DUBOIS, Jean-Daniel. Nag Hammadi: O Evangelho de Tomé. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, p.50-61.
[13] STORI, 2010,  p. 21.
[14] ROBINSON, James M.(Ed.).  The Nag Hammadi Library. San Francisco: HarperCollins, 1990, p. 123.
[15] URO, 2003, p. 24.
[16] STORI, 2012, p. 59.

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