UMA
LITERATURA EM TORNO DE JUDAS TOMÉ:
DE
APÓSTOLO INCRÉDULO A CONFIDENTE DE JESUS
José
Aristides da Silva Gamito[1]
Resumo
A tradição do
Novo Testamento apresenta o apóstolo Tomé como uma pessoa incrédula e com pouco
destaque nesses textos, porém, desenvolveu-se na Síria Oriental uma literatura
em torno de seu nome que o elevou a um apóstolo exemplar a ponto de
identificá-lo como “gêmeo” de Jesus. São textos atribuídos a esse apóstolo: O
Evangelho de Tomé, os Atos de Tomé e o Livro de Tomé, o Contendor. Há temas
comuns que unem esses textos como à identificação de Tomé como gêmeo de Jesus, a
busca da imortalidade, o estímulo ao ascetismo, o desprezo do mundo e incentivo
ao retorno à condição primitiva do homem. Propomos identificar essa literatura tomasina
e sua importância para o conhecimento do cristianismo primitivo.
Palavras-chave:
Apóstolo
Tomé, literatura, cristianismo primitivo.
1.
Introdução
Os
escritos do Novo Testamento tiveram sua autoridade garantida através do costume
que se tornou recorrente no cristianismo primitivo de atribuir escritos à
autoria dos apóstolos. Os textos considerados canônicos têm como autores
pessoas que conviveram diretamente com Jesus ou pessoas que conviveram com seus
apóstolos. Isso se deve à função memorial destes escritos. Aqueles que
aprenderam com Jesus ou daqueles mais próximos dele que tiveram acesso ao
ensinamento original. São testemunhas do ensinamento ortodoxo.[2]
Visto que, na diversidade do cristianismo dos séculos I e II, havia diferentes
versões dos ensinamentos de Jesus que se esforçavam por hegemonia.
A
autoridade depositária dos ensinamentos genuínos de Jesus é a figura do
apóstolo. O termo apstolos-apostoloi
ocorre
80 vezes no Novo Testamento. Paulo utiliza-o 30 vezes para embasar sua
autoridade para ensinar em nome de Jesus.[3] Os
evangelhos, atos, cartas e apocalipses canônicos e apócrifos são, em sua quase
totalidade, atribuídos a um apóstolo.
Dentre
os textos do cristianismo primitivo, há um conjunto de textos que circularam
sob o nome do apóstolo Judas Tomé. São o Evangelho de Tomé, Atos de Tomé e o
Livro de Tomé, o Contendor. Este corpus literário
é chamado de Escola de Tomé. Eles apresentam temas comuns de uma variante de
cristianismo típica da Síria.
2.
As
duas faces do apóstolo Judas Tomé
O
apóstolo Tomé é elencado no grupo dos doze apóstolos de Jesus e aparece em Mt
10, 2-4; Mc 3, 16-19; Lc 6, 13-16 e At 1,13. No Evangelho de João 20, 24-29,
Tomé não é tomado como um dos melhores exemplos entre os seguidores de Jesus.
Ele é descrito como um apóstolo incrédulo e que exige provas para acreditar na
ressurreição. Porém, na tradição siríaca sobre a qual nos deteremos,
constrói-se uma imagem de destaque de Tomé. As versões siríacas de João
utilizam “Judas Tomé” no lugar de “Judas, não o Iscariotes”, na tentativa de
dissociá-lo do Tomé do capítulo 20.[4]
No
quarto evangelho, Tomé é um personagem polêmico. Em João 6,11, quando Jesus
decide ver seu amigo Lázaro que tinha morrido, Tomé diz: “Vamos também nós,
para morrermos com ele!”. O retorno de Jesus à Judeia colocava-o sob ameaça
porque alguns pretendiam matá-lo por causa da acusação de blasfêmia. Mesmo não
compreendendo a razão de Jesus voltar a Betânia, Tomé está decidido a
participar do destino de Jesus.[5]
Mais
adiante no capítulo 14, 5, Tomé afirma que não conhece o caminho para seguir
Jesus. Esta interrogação induz Jesus a emitir uma sentença de identificação:
“Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. No capítulo 20, 24-28, aparece a dúvida
de Tomé quanto à ressurreição de Jesus. Ela aparece dentro de quadro otimista e
de alegria dos discípulos com a notícia da ressurreição. A postura de Tomé
contraria a lógica de Jesus que espera que se acredite sem provas. O episódio
termina com uma confissão de Tomé reconhecendo Jesus como Senhor e Deus.[6]
O
estigma de incrédulo é superado na literatura extracanônica. O apóstolo
designado como Judas Tomé é uma tradição da Síria Oriental. Diferentemente do
Novo Testamento, os escribas siríacos identificaram o Judas, filho de Tiago (Lc
6, 16), com Tomé. A dupla designação Judas Tomé aparece em textos de origem
siríaca como a lenda do Rei Abgar, a Doutrina de Addai e os Sermões sobre a Fé
de Efrém. Os Atos de Tomé descrevem esse apóstolo como o “gêmeo de Jesus”. Essa
descrição foi preservada no meio de fala aramaica/siríaca.[7]
Nesta tradição, ele é um herói positivo.
Judas
Tomé é descrito como um apóstolo que evangelizou a Índia realizando pregações e
milagres. De incrédulo ele se tornou o apóstolo protótipo e guardião das
“palavras secretas” de Jesus chegando ao ponto de ser apontando como o gêmeo
espiritual de Jesus. Ele se torna o gêmeo místico de Jesus, sua cópia perfeito.
Em outras palavras, o discípulo por excelência.[8]
3.
Uma
literatura sob a autoridade de Judas Tomé
Em Nag Hammadi
foram descobertos dois textos sob a autoridade de Judas Tomé que são o
Evangelho de Tomé e o Livro de Tomé, o Contendor. As características desses
textos os aproximam dos Atos de Tomé que narram as jornadas missionárias de
Judas Tomé. São textos com diferentes gêneros. O Evangelho de Tomé se vincula a
tradição de sentenças de sabedoria. O Livro de Tomé pertence ao gênero de
diálogos da ressurreição. São diálogos que ocorrem em alguma cena pós-pascal
entre Jesus e os discípulos. Os Atos de Tomé são semelhantes às biografias e
novelas greco-romanas e também da literatura hagiográfica e martirológica.[9]
Tabela
01 – Identificação do corpus tomasino
Textos
|
Evangelho de Tomé
|
Atos de Tomé
|
Livro
de Tomás, o Contendor
|
Dados autorais
|
Escrito entre o final do século
I e até segunda metade do século II, em siríaco ou grego, em Edessa (STORI,
p. 9).
|
Escrito em siríaco e em grego,
(STORI, p. 14).
|
Texto copta encontrado em Nag
Hammadi, proveniente da Síria (STORI, p. 14).
|
Gênero e conteúdo
|
Evangelho de sentenças,
composto de 114 ditos (ensinamentos de Jesus).
|
Romance, narrativa da viagem
missionária de Tomé para a Índia.
|
Trata-se de um diálogo entre
Jesus Ressuscitado e seu discípulo Tomé.
|
Os
textos que circularam sob a autoria de Tomé possuem conexões temáticas entre si.
Fala-se, então, da existência de uma comunidade ou escola tomasina. Os Atos de
Tomé e o Evangelho de Tomé apresentam o apóstolo como o destinatário das
palavras secretas de Jesus e compartilham a idéia de que ele é o “gêmeo” de
Jesus. Há vários paralelos entre essas duas obras (Evangelho de Tomé 37, 2/Atos
de Tomé 14; 2/136; 22,4/147 e 75/12). Já o Livro de Tomé tem como paralelo com
o Evangelho de Tomé a ideia de “descansar” e “reinar” (Livro de Tomé 145,
10-16).[10]
O
logion 13 do Evangelho de Tomé e
capítulo 39 dos Atos de Tomé colocam o apóstolo como um iniciado dos
ensinamentos secretos de Jesus. Ele recebeu de Jesus ensinamentos aos quais os
apóstolos não tiveram acesso. Por isso, no debate sobre a identidade de Jesus
no logion 13, Tomé possui a resposta
mais adequada. No capítulo 47 dos Atos,
o apóstolo Tomé afirma que Jesus revelou seus mistérios mais a ele do que aos
outros discípulos. Os dois textos compartilham a informação de que Judas Tomé
teve acesso a ensinamentos exclusivos dos mistérios de Jesus.[11]
No Evangelho de Tomé 62, Jesus diz: “Eu digo meus mistérios a que são dignos
dos meus mistérios”.[12] A
semelhante entre estes dois textos levou a Puech a levantar a hipótese de que
os Atos são dependentes do Evangelho de Tomé.[13]
No Livro de Tomé ocorre a mesma situação.
Jesus revela seus ensinamentos a Tomé. No prólogo, assim diz: “As palavras
secretas que Jesus falou a Judas Tomé que, eu Matias, escrevi”. Se o
compararmos com o prólogo do Evangelho, encontraremos palavras semelhantes:
“Eis as palavras secretas ditas por Jesus, o Vivente, escritas por Judas Tomé,
o Gêmeo”. Há apenas uma diferença entre quem escreveu, porém, o ouvinte
especial de Jesus é o mesmo Judas Tomé.[14]
Dentre
os textos da literatura tomasina, o Evangelho e os Atos possuem maior número de
paralelos. Inclusive, os Atos parecem ser dependentes do texto do Evangelho. Há
idéias que perpassam os dois textos representam uma mesma tradição: A
insistência de que o desnudamento é condição para o conhecimento de Jesus (AtT
14/EvT 37, 2); o apelo para buscar e encontrar, descansar e reinar (AtT 136/EvT
2); a transformação da dualidade em unidade (AtT 147/EvT 22, 4) e a imagem da
câmara nupcial como lugar dos eleitos (AtT 12/EvT 65). Risto Uro sugere que o
evangelho influenciou o texto dos Atos.
A
Escola de Tomé possui como traços teológicos a relação entre o cristão e Jesus
cognominado de o Vivente. A autoconsciência, o conhecimento de Deus e a ênfase
no discipulado marcam estes textos. De acordo com um esquema elaborado por
Layton duas características são marcantes nesta escola: a) A presença do mito
da origem divina do ego no Hino da Pérola (texto integrante dos Atos de Tomé);
b) A idéia de que Tomé e Jesus possuem uma relação de geminidade divina.[15]
A
existência de um conjunto de textos, com temática comum, origem comum e
atribuída ao mesmo autor sustenta a tese de que houve uma comunidade ou pelo
menos leitores ou cristãos que compartilharam esses textos. Há diversas posições entre os estudiosos
sobre o corpus literário tomasino: A afirmação da existência de uma comunidade
de cristãos tomasinos (Puech); a existência de uma escola tomasina (Layton);
uma tradição sobre Jesus anterior aos evangelhos canônicos (Riley) ou apenas
leitores que compartilharam uma tradição sobre Jesus que circulou sob a
autoridade de Tomé (Phillip Sellew; Risto Uro).[16]
4.
Considerações
finais
O corpus tomasino relê a tradição do
apóstolo Tomé de uma maneira positiva e nova em relação à tradição canônica.
Além disso, os textos tomasinos trazem importantes informações sobre
cristianismo primitivo. Principalmente, de uma variante de cristianismo
anterior à ortodoxia latino-ocidental. Trata-se de um cristianismo mais livre
de hierarquia e da mediação sacerdotal para ter acesso à espiritualidade
cristã. O estudo destes textos amplia a visão histórica, social e teológica das
primeiras comunidades cristãs e de sua diversidade de pensamento e posturas.
Referências
GUTIÉRREZ, José
Alfredo Noratto. Discípulos y Apóstolos em Cuarto Evangelio: una aproximación
linguístico-semántica desde los Textos del Nuevo Testamento. Franciscanum,
n. 145, enero-abril 2007, p. 27-42.
KUNTZMANN,
Raymond; DUBOIS, Jean-Daniel. Nag
Hammadi: O Evangelho de Tomé. São
Paulo: Edições Paulinas, 1990.
PATTERSON, Stephen J; BETHGE, Hans-Gebhard; ROBINSON,
James M. The Fifth Gospel.
London,/New York: T&T Clark, 2011.
ROBINSON, James M.(Ed.). The Nag
Hammadi Library. San Francisco: HarperCollins, 1990.
STORI, Eliana. Edessa, la Città Benedetta. ASE, v. 29,
n. 1, 2012, p. 49-61.
___________. Tomaso in Siria: La Ricezione del
Vangelo secondo Tomaso nella Letteratura Cristiana di Siria (Secolo II-V).
Università degli Studi di Torino, Torino, 2010.
URO, Risto. Thomas:
Seeking the Historical Context of the Gospel of Thomas. London/New York: T
& T Clark, 2003.
[1] Bacharel e licenciado em
Filosofia, mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória.
E-mail: joaristides@gmail.com.
[2] Com as expressões “ensinamento
ortodoxo”, “ensinamento genuíno”, nós pretendemos afirmar aquela doutrina
hipoteticamente mais próxima à oralidade do ministério de Jesus. É necessário
ressaltar que esses termos são plurais e pode induzir a diferentes
interpretações.
[3] GUTIÉRREZ, José Alfredo Noratto.
Discípulos y Apóstolos em Cuarto Evangelio: una aproximación lingüístico-semántica
desde los Textos Del Nuevo Testamento. Franciscanum,
n. 145, enero-abril 2007, p. 27-42.
[4]
PATTERSON, Stephen J; BETHGE, Hans-Gebhard; ROBINSON, James M. The Fifth Gospel. London,/New York:
T&T Clark, 2011, p. 30-31.
[5] STORI, Eliana. Tomaso in Siria: La Ricezione del
Vangelo secondo Tomaso nella Letteratura Cristiana di Siria (Secolo II-V).
Università degli Studi di Torino, Torino, 2010, p. 2.
[6] STORI, 2010, p. 4-5.
[7]
URO, Risto. Thomas: Seeking the
Historical Context of the Gospel of Thomas. London/New York: T & T Clark,
2003, p. 10-11.
[8]
STORI, 2010, p. 37-38.
[9]
URO, 2003, p. 8-9.
[11]
URO, 2003, p. 11-12.
[12]
KUNTZMANN, Raymond; DUBOIS, Jean-Daniel. Nag
Hammadi: O
Evangelho de Tomé. São Paulo: Edições Paulinas, 1990, p.50-61.
[13] STORI, 2010, p. 21.
[15]
URO, 2003, p. 24.
[16]
STORI, 2012, p. 59.
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